domingo, 22 de dezembro de 2013



Tarcísio,
    Entre o suor da sua pele e a rouquidão em minha voz existe uma conexão inexplicável. Tu que não sabes da existência do meu ser não mais do que de todos os outros duzentos mil que seguem seus passos, talvez não entenda essa minha pequena obsessão. Eu, que sei de cor todos os seus gestos sem ao menos ter te encontrado três vezes na vida, já ignoro a ausência que sua psicologia melódica faz nos meus aposentos.
    E parece que toda a cidade já dividiu um cigarro e uma cerveja contigo, enquanto eu me encontro aqui, com inúmeras oportunidades perdidas de dividir qualquer alegria com você, mesmo que tu pareças estar tão perto da minha vida, tão conectado e entrelaçado nos meus amigos. Ainda sim, distante de mim. Mas o que eu diria ao te encontrar? O que eu faria ao me apresentar a um de meus amigos mais antigos, mas que não sabe meu nome e não conhece meu rosto? A verdade, Dudu, é que complica quando se trata de duas almas que se entendem tanto e nunca se provaram. Eu poderia muito bem me deleitar em seus abraços apertados, pena que o mundo não permite tanto sentimentalismo exacerbado e poesia em demasia num mesmo metro quadrado.
    Entre a multidão e o palco mal cabia nós dois e eu quase me mordi de um ciúmes que não tenho quando tive que dividir amor e música com uma horda de paixões da sua vida. Eu queria que você soubesse do aperto que sinto no peito quando penso nas mazelas do mundo, da angústia que me ataca quando penso no futuro incerto e desejado que sonhei, na tristeza engavetada que me atinge quando lembro do passado que não me arrependo e ainda insiste em me perseguir. Tu vais dizer que é a idade, que isso passa, que sou nova demais pra entender a vida. O problema é que minha pequenina poetiza não vai embora, meu aprendizado brinca de camaleão e se esconde nas folhas das árvores da minha rua e eu insisto no anonimato das palavras. Isso de querer de longe tudo o que eu nunca pude ter de perto um dia ainda me tira a saúde.
    É por essas que me escondo, Tarcísio. Mas um dia eu divido um holofote contigo, quem sabe divido também umas doses e uns risos?

    Com amor de quem muito zela por ti e te admira,

    Najla Brandão.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013



Carta à Tarcísio
   Provável que nem tu saibas, Eduardo, que esta carta é para ti. Um desabafo de alma pra alma; máquina pra máquina. Talvez tu sejas, Tarcísio, o único psicólogo de cordas que consiga ter o tato de enxergar minha alma e cifrar minhas angústias, hoje, dez anos mais novas que as tuas. Por onde começar? Entre tanta cor, fica complicado escolher a melhor tinta para pintar a sala.
   Sei que há tanta gente minha, mas poucas que me tem e, diga-se para deixar registrado, que me retém. O mundo é todo meu e eu sou de ninguém. Amo quem me ama, mas sou fiel, quando muito, somente à mim. E sou errada. Amo tudo de forma errada, faço, ouço, falo e sinto tudo errado. Brinco de acreditar que de fato me apaixonei por outro alguém. Sou tão tola que às vezes brinco de acreditar que sou feliz.
   Sou a “coisa”. A “coisa” bonita, a “coisa” errada, a “coisa” decepcionante, a “coisa” inteligente, a “coisa” esperta, a “coisa” que dá vontade de beijar… e por aí vai. Uma imensidão de coisas de uma coisa só. Desconheço alguém, Tarcísio, que me veja como gente e não objeto. Jamais conheci alguém que tivesse um verdadeiro interesse em me manter interessada. Querem beijo, corpo, saliva, suor, amor, respostas, dinheiro, resultados e escravidão, mas ainda estou a espera de conhecer alguém que queria engolir a minh’alma. Exibem-me como o troféu da Copa, mas também me escondem como a mancha na toalha de mesa: o que for bom, que o mundo veja; o que não presta é melhor que nem os cadáveres saibam por onde anda.
   E tenho essa loucura que chamam de lar, sabe? Aqui eu sou cego em tiroteio, é bala perdida pra tudo quanto é lado e meu trabalho é dançar em zig-zag entre os projéteis para não ser atingida. De tempos em tempos temos um falso cessar fogo, que só o mais ingênuo acredita. Essa violência é o motivo da tarja-preta estampada na minha cara e na gaveta da sala.
   Como se não bastasse, andam vivendo por mim. Ou pelo menos, é o que parece quando olho demais para a minha vidinha e sinto que todo o tempo que não estou bem naquele quadrante. Tu já te sentistes assim? Como se a vida que tu vives não és tua? Já não sei o que fazer, torpor ou agonizar.
   Pois também pouco sinto. Não sinto abraços ou amor, mesmo abraçando e amando, sendo abraçada e amada. Confiro o que sinto pelas alheias carinhas de felicidade. Estranho que eu me sinta quase feliz ao ver um sorriso teu numa foto de fã.
   E me explica como funciona a solidão? Pois venho sofrendo dessa falha terrível no tanque da minha máquina e não sei o que fazer com ela. Troco o tanque? Troco a máquina? Troco as pessoas? Troco eu? Porque tanto medicamento por semana? O que fazer quando ninguém consegue suprir a falta que faço em mim mesma?
  Sabe, Tarcísio, a verdade é que eu nunca fui alguém que se achasse metade da laranja. Até porque eu sempre fui laranja inteira, o que me impede sempre de dividir qualquer coisa com alguém, a começar por dividir uma vida. Sei lá, cara, pensei que escrever com tinta preta ia me ajudar a tirar a graxa das artérias, entende? Que escrever para quem desconheço, ia me ajudar a me entender. Talvez o mais importante é que pensei que poderia te achar laranja inteira também no meio de tanto limão partido ao meio. 
Um beijo saudoso de que menos te conhece.
Najla Brandão
"É que você já foi tanta coisa pra mim, João. De paixão à salvador, de uma forma ou de outra ,o resultado seria o mesmo: uma hora ia acontecer de não se saber sobre o amanhã. E então como é que fica o que eu sinto? Não sei. Quero pelo menos ter a certeza de onde estão minhas coisas, já que minha cabeça está perdida em algum lugar da sua vida."
João - Entre Laços

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013




    Toc toc.
   Atendo a porta e ninguém bate. Não entendo o que há de errado na minha cabeça. As visitas chegam, batem à porta e se vão sem se apresentarem. Não tenho a chance de sequer saber seus nomes ou o que vieram fazer aqui. Trazer amor? Paz? Diversão numa noite de filme e pipoca em que morro de tédio com os roteiros românticos? Eu e essa minha mania de mandar embora sem pedir para entrar, sem oferecer um café ou um copo d'água. Afinal de contas, chegar até aqui não é fácil. Muita escada pra subir, os degraus da minha vida são altos e o corrimão escorregadio.
   Eu arrumo a casa toda. Troco os lençóis, tiro a sujeira acumulada atrás das portas, limpo o pó da mobília que não uso há tempos como o coração e a espontaneidade de se fazer o que quer. Depois da faxina sento no sofá e espero que cheguem. Eles vêm e eu me escondo debaixo da cama com medo de ser coisa ruim. Vai que é um ladrão, né?
   O que me aconteceu hoje foi a chuva. A chuva sempre me acontece. Caiu um pé d'água e acabei molhando os sapatos. E os braços. E parte da bolsa que carregava no ombro. Enquanto chovia, eu me lembrei de Shakespeare e uma de suas citações que falava qualquer coisa sobre alguém amar a chuva e se esconder dela. Pensei naquilo por um instante e vi que era uma bobagem tremenda estar segurando um guarda-chuva quando sou uma fanática pelo aguaceiro. Num ato de tremenda ousadia levei as minhas pequeninas mãos para fora do guarda-chuva, uma tentativa tímida de me molhar. Fiquei me sentindo uma boba fazendo isso, ainda mais eu que sempre "esquecia" a sombrinha em casa num dia nublado demais só para ter desculpa quando chegasse em casa com os ossos encharcados.
   Cheguei no portão de casa reparando nas árvores cheias de musgos e na calçada quebrada por conta das raízes que insistiam em respirar um pouco de ar fora da terra coberta de concreto. Eu tenho um amor secreto por essas árvores e pelas suas raízes meio aéreas. Isso me configura inimiga número um da prefeitura que insiste em podar, quebrar galhos e participar dessa conspiração contra as árvores da cidade. Já destruíram duas ou três das minhas preferidas. Árvores enormes, árvores que florescem amarelas com os ventos primaveris. Detesto vê-las derrubadas ao chão sob a desculpa de que "atrapalhavam a passagem", são os humanos imbecis que atrapalham a passagem de seus galhos e de suas majestosas raigotas. O ponto a que quero chegar é que não quero tirá-las da calçada quebradinha, prefiro que elas cresçam por ali mesmo, e é provável que esse seja o motivo de  poucas pessoas passarem por aqui. A passagem está meio obstruída e é preciso muito cuidado para que se chegue à porta.
   Depois de tanto pensar sobre a minha casa, só pude perceber uma coisa. Não me importo em ser feliz sozinha e ter como companhia as plantas, a água e o cheiro de roupa limpa. Prefiro conversar na porta com os amigos que fazem visitas esporádicas do que convidar alguém para entrar e a visita passar a vida toda na minha casa. Gosto de ter uma escova de dentes solitária no banheiro e uma geladeira cheia de comida.
   Que assim seja enquanto a chuva durar.

Najla Brandão

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

"É que eu não sei."

Depois de tanto tempo a simplicidade das suas palavras ainda me encantam, mesmo que de um jeito diferente. Eu não sei o que pensar disso. E essa é uma frase que eu ando usando muito nos últimos dias, provavelmente porque pensar cansa a minha cabeça e, consequentemente, me deixa vulnerável aos sentimentos que prefiro não senti-los por agora.
Há algum tempo eu não afirmo ou tenho certeza de algo, o que é estranho porque nunca me senti tão segura diante das minhas próprias incertezas ou das dúvidas que essa vida nos traz. Ainda sim, não sei o que dizer. Não sei se devo deixar você ir ou se devo pedir para ficar, não sei do que você fala também. Desconheço minhas falhas e meus acertos, ando fechando os olhos para quase tudo na vida que possa engatilhar a arma que é a minha própria mente afogada em ansiedade. Confesso uma coisa: não tenho medo de desistir dos meus sonhos, tenho mais medo de desistir de mim e ainda usar de desculpa algo como "vou deixar isso para depois". Eu nunca deixo nada para depois. O meu depois nunca vem. Eu sempre fui assim e você sabe: ou é agora ou não é.
De tanto não saber sobre nada fiquei neutra em relação à ti. Não me lembro da última vez em que cheguei a formular conceitos e opiniões sobre você. Meu método de tentar viver no stand-by até que minha vida toda se resolvesse em alguns dias é muito bom: não estou a parte de nada e ao mesmo tempo participei de tudo. Estive lá quando você chamou, mas não levei os sentimentos pra casa, não guardei suas queixas no armário e nem quis saber de tirar da bolsa qualquer informação relevante ou não sobre mim. Eu estive na sua frente balançando a cabeça energicamente quando achava apropriado, mas eu também estava em outro lugar tentando me alienar do mundo. Não encare isso como algo ruim, é só a maneira mais saudável que arranjei de esquecer a angústia da espera.
O que posso dizer? Aconselhar-te a não me pedir conselhos, creio eu. Eu não estava presente nos momentos. Eu não sei se devo te dizer adeus ou se devo te estapear para que largue a sua novela mexicana e deixe essa bobeira de lado. Ofereço o que tenho: um pedaço de mim. O resto tá guardado para não se desgastar com o tempo. Janeiro já vem para que eu possa me tirar do fundo do guarda-roupa.
Aqui fica minhas sinceras desculpas por não saber o que dizer.

terça-feira, 12 de novembro de 2013



Sallie,

   Perdida em seus tormentos novamente, uma súbita necessidade de te escrever me vem. Justo eu que ando procurando incessantemente as palavras para tocá-las em papel, elas me vêm quando menos espero. Imagina só se a inspiração vem e estou sem papel ou caneta, sem qualquer coisa para anotar? Perdoe-me, estou divagando. A minha vontade é de intrometer nas suas introspectivas angústias para dar meu parecer. Começo falando sobre a poesia.
   Sallie, eu já encontrei muita gente nessa vida e poucas coisas pude perceber nesses meus verdes anos. Uma delas é que tem gente que nasce poeta e tem os mais belos sentimentos do mundo guardados no peito, mas nunca escreveram uma linha sequer e talvez nunca cheguem a escrever. Da mesma forma, já li muitos poetas que pouco sabiam conversar com a alma do outro que não fosse por palavras escritas e jogadas em papéis brancos. Também percebi que se nasce poeta, ninguém se transforma em um.
   Sobre a dúvida, deixo a minha crença: quanto mais se questiona a vida, mais aflições e agonias o espírito sofre. E mais belo ele é. Ser distraído é uma dádiva de felicidade, mas encontrar problemáticas para resolver em cada esquina também. Cada qual com sua beleza e sua tristeza. Confesso gostar dos tormentos, há certo masoquismo em sofrer para descobrir onde está a tão aclamada felicidade.
   Nestas dúvidas moram também os caminhos, depois de muito se pensar sobre qualquer coisa temos que decidir o que fazer com as nossas respostas. Até mesmo não fazer nada é escolher nesse jogo complicado da busca de "ser" ou "estar". A própria existência é uma escolha. E sobres os sonhos, creio que as melhores pessoas querem fazer a diferença numa vida ou em várias. Fazer rir também já basta para mim. Apesar de até hoje não ter achado mais o meu sentido por aqui do que você, minha filosofia é um pouco diferente. O cansaço me pega sempre por aí.
   A única coisa que almejo é ter todos os dias um motivo a mais para viver o inesperado dia de amanhã.
   Desculpa a singelez, eu só queria um diálogo.
   Com muito carinho,

Najla Brandão.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013



Sinto muito pelas palavras perdidas. Nos últimos meses tenho sido egoísta, guardado todas as palavras para mim, todos os sentimentos; pouco quero saber do que o outro está a poetizar. A minha barbárie tem se ascendido, cada vez maior, estou incapacitada das boas ações, de enxergar os mortos e os feridos, mas principalmente estou completamente incapaz de sentir. E tenho me agarrado a qualquer sombra que me passa percebida que possa revelar um pouco de amor. Qualquer mordida, qualquer abraço, um pouco de afeto e café já estão a aquecer a minh'alma. A minha voz grita por um pouco de carinho, um pouco de suspiro alegre, não esse suspiro cansado e velho. Preciso demasiadamente das carícias, a minha tristeza nímia me carbonizou. 
Estou daltônica com o mundo, valores e amores trocados, sementes de esperança jogadas ao vento sem nem se quer ter brisa para levá-las a algum lugar onde possam crescer. Se isso é não estar a ver direito, é o quê? Não quero quebrar mais o coração de ninguém, não quero tentar mais nada em vão. Quero acertar. Pelo amor! Eu preciso acertar alguma coisa. Estou cansada de me vestir de fracasso, de cheirar a derrota. Não quero mais cheirar a doses e fumaças. Eu nunca achei paz dentro de ninguém, muito menos a minha paz; mas eu desejo o sossego. Desejo a compreensão destas palavras, alguém que as leia e as entenda, as sinta. SENTIR! Sentir. Fazer sentir. O que é isso?
Há sempre algo me impedindo de ser tudo não é mesmo? As vezes sou eu, as vezes são os outros. Eis que sempre houve pessoas perdidas em histórias antigas, prisoneiras do enredo; mas quando há de existir o bom-vilão com seus inúmeros defeitos que salvará os prisioneiros destas celas imundas? Quando há de vir o salvador, que não irá nos escravizar, mas sim trazer os princípios iluministas do amor e da liberdade? Quem irá fazer a nova revolução? Pois não estamos mais vivendo dentro de nós mesmo, estamos vivendo o contrato, o acordo com Deus.
Sinto muito pelo desabafo, ando perdida, João. Sempre andei.
Najla Brandão

sexta-feira, 27 de setembro de 2013



Ei, deixa eu amar com você? Ou pelo menos por você? Tem tanta coisa bonita aí dentro, devia ser colocada pra fora junto com essa poesia que tá rabiscada em versos simples nesse sentimento tão lindo. Amor tem que passarinhar, não pode ficar preso. Canarinho canta na gaiola também, mas é um canto tão tristinho! Então deixa, bota pra fora, esbalda. Se você não quiser eu quero. Deixa que eu choro pra você, faço declarações, declamo poema, fico piegas e brega se tu não quiseres parecer assim tão ridículo. É que paixão deixa a gente meio bobo mesmo, mas eu tô louca pra sentir isso. Dói o coração de ver tanta gente sentindo muito e eu aqui com um cadiquinho de nada, o suficiente pra viver. O que eu não daria pra sentir friozinho na barriga, a cabeça flutuar e ficar rabiscando um nome qualquer no caderno? Desculpa o egoísmo, é que eu não gosto de desperdício. Vai, faz isso por mim dessa vez. Eu deixo você sentir dó de mim agora. Pode pensar assim: ah, que peninha. Deixa eu me entregar.
Deixa, vai.
Eu deixo.
Só não deixa acabar.

Najla Brandão

sábado, 21 de setembro de 2013

 


 Um suspiro e paciência, né? Não adianta esperar que esse sentimento passe. É aquele tipo de solidão estranha que parece não querer desgrudar. Passa o dia todo quietinha e se comportando muito bem, daí o silêncio se monta na casa e ela já sai gritando e fazendo danças esquisitas por perto. Convido ela pra sentar, pois há dias em que a gente se dá bem. É o tipo de solidão que não dá pra compartilhar com mais ninguém. Pega desprevenido, levanta questões, debate psicologia intrapessoal.
    "_E aí, doutor, é grave?
    _Temo que você sofra de um tipo raríssimo de esquizofrenia.
    _Ó. Isso tem cura?
    _Infelizmente não.
    _Vai doer?
    _Um pouquinho.
    _Sempre?
    _Sempre."
    Admito que me deprime um pouco essa excentricidade emocional. É um pouco complicado sentir a vida desse jeito extra-sensorial. Mãos, olhos, boca, ouvidos, nariz e arrepios não são suficiente. Nem mesmo o coração é uma maneira interessante de se sentir o mundo. É preciso mais. Sentir com o tato dos outros, ouvir com os ouvidos da alma, falar com a mudez das coisas. O que me entristece é que nasceram poucos nesse planetinha que sejam capazes de imaginar coisas exatamente onde elas existem.
    "_Eu me excito com praças.
    _Eu também.
    _As pessoas aqui não parecem perceber que são importantes para mim. Isso meio que me dá tesão.
    _Só assim para gostar do descaso.
    _Gosto do jeito que me sinto. Sozinha, mas completa e rodeada.
    _Se a solidão te acompanha não existe estar sozinho.
    _As vezes eu gosto de você.
    _Eu te amo o tempo todo."
    Tudo bem. Minha esquizofrenia extrapola alguns limites. Em meu mundo é comum conversar com sentimentos e sensações. Discutir relação com a solidão é rotina, principalmente em dias assim em que tudo parece quieto demais. A necessidade de bagunçar tudo e ter algo que revire tudo. Um sentimento que me rasgue por dentro, que queime todos os meus conceitos e que afague as minhas bobagens. Respira, vai. É madrugada. A compreensão de si talvez assuste. Mas eu tenho uma boa amiga. Ela disse que me ama.
    O tempo todo.
    Uma linda mesmo.

Najla Brandão

sábado, 31 de agosto de 2013

Paraquedas



      Amarelo é tudo o que eu consigo escutar quando lembro que ainda dá pra amar um dia. É tudo o que eu consigo ouvir quando percebo que eu quase te amei. Quase cheguei lá no meio do tons de piano, da rouquidão do Martins e do silêncio que se fazia entre a gente quando quase nos entregamos por completo. O zelo continua o mesmo, o que mudou foi a vontade de ficar. O que me importa é saber que ainda cuido de longe: na prece, no carinho ao escutar as faíscas do violão e da guitarra. Ainda danço em cima dos restos de nós dois, sei que um dia vai nascer qualquer coisa nova e bonita para mim, espiões podem sair da terra úmida e eu vou aprender a amar de novo. Entre os problemas e as aranhas, eu acabei aprendendo a controlar as minhas ânsias. Eu nunca quis machucar ninguém.
No fundo sabíamos da imutabilidade e da inanição que por fim perseguiriam nossos pequenos progressos. Não havia com o que se alimentar mais. Em um dia qualquer eu pularia de um precipício escarpado sem um paraquedas enquanto gritaria para não entrar em pânico. Imploraria uma ou duas vezes para que não enlouquecesse ou para que não se apaixonasse. Tudo não ia parecer nada além de uma tentativa patética de parar o inevitável. Não existe confiança em alta velocidade, só nossas cabeças explodindo e o arrepio enquanto se canta qualquer coisa sobre a eternidade.
Mas eu ainda tenho muito o que agradecer. Esperança ainda é uma palavra para se usar.

Najla Brandão

quinta-feira, 23 de maio de 2013




Ela ia visitar aquele hospital duas ou três vezes por semana, sempre para ver o progresso da avó que se recuperava de um câncer na laringe. E em algum momento no meio das luzes amarelas, uniformes verdes, cheiro de álcool, gente tossindo, rostos ansiosos e residentes incompetentes, eu me apaixonei. Seu nome era Clara e ela parecia iluminar aquele ambiente inóspito e doente com suas unhas com esmalte colorido. Era o meu maior veneno e a minha maior salvação.

Ela chegava mais ou menos às onze horas toda segunda, quarta e sexta-feira, sentava-se na cadeira ao lado do leito da sua avó com os pés balançando feito uma criança. Ficava ali lendo uma revista e contando qualquer coisa para a Dona Marta até os sedativos fazerem efeito e aquela adorável senhora dormir. Clara devia ter um metro e meio de altura e era linda. Desde as dez horas eu a esperava e tinha que escutar o bipe incessante do meu monitor aumentar o ritmo violentamente, daí pra frente era uma terapia forçada ter que obrigar meu coração a se acalmar. Eu observava todos os seus movimentos pelo canto do olho. Um dia ela veio no turno da noite e nesse dia ela me pediu uma revista.

_Oi, pode me passar essa revista ao seu lado, moço? -era uma voz rouca, meio grossa para uma menina, mas combinava tanto com ela! Chamou-me de moço. Ela sibilou o cê-cedilha de um jeito tão injusto comigo que meu monitor disparou de novo. Droga.

Clara me olhou assustada, suponho que ela pensou que eu estava tendo um piripaque. E estava mesmo. Respirei fundo umas duas vezes, tentei me recompor. Por fim, eu entreguei-lhe a revista, tremulando com o excesso de adrenalina correndo nas veias. Exatamente como se eu tivesse doze anos. Ela me espiava por cima das páginas, temendo que o monitor enlouquecesse novamente. Respirei fundo mais uma dúzia de vezes, reuni toda a coragem do mundo e fiz uma pergunta que eu já sabia a resposta.

_Como você se chama?

_Clara. -ela pronunciou o L de uma maneira imperdoável, com a língua indo lá em cima, no céu da boca e descendo com uma suavidade que só seu nome tinha. - E você?

_Lucas. Sua vó ta melhorando, né? A Dona Marta é uma senhora muito gentil. -elogiei sua avó que era um amor de senhora, sempre sorridente e gentil com os residentes e enfermeiros incompetentes.

_Sim. E você, qual seu problema?

Essa pergunta não soaria rude vindo de qualquer pessoa? “Qual seu problema?”, oras, não tenho problema algum. Só uma doença. Mas ela fez isso parecer bom, fez da minha doença um eufemismo.

_Tenho um doença congênita cardíaca e até eu fazer uma cirurgia, não posso passar por grandes emoções. Qualquer susto pode me derrubar. -respondi. Isso parecia tão patético. Nossa olha que babaca esse Lucas, não pode nem correr dois quarteirões que já tá morrendo. Risadas maléficas de garotos do ensino médio. Mas os olhos de Clara brilharam com a notícia, eu pude ver em seus olhos que ela desejava falar “que legal!”, mas ela sabia que isso ia ser um pouco indelicado.

_Vai demorar muito até você conseguir fazer essa cirurgia?

_Hoje à noite. -suspirei.

_Boa sorte, então. -ela sorriu pra mim. Como alguém podia transpirar beleza dessa forma? Aquele sorriso aberto, cheio de dentes e lábios, como quem quer devorar a gente. Eu devolvi o sorriso e ela deixou que a cortina de cabelos castanhos cobrisse-lhe o rosto, voltando sua atenção para a revista.

Continuei a observá-la, imaginando mil e uma maneiras de iniciar uma nova conversa, de escutar sua voz de novo e de ter um motivo para encarar seus olhos deliciosamente castanhos. Eu não conseguia prender muito a minha atenção nos planos, estava sempre me perdendo em algum traço seu: como a sua pele era delicada perto dos ombros e no colo, como ela soltava uma risada abafada quando lia alguma matéria divertida, a forma como checava o sono da sua avó e o jeito que ela cruzava as pernas na cadeira. Clara já tinha terminado de ler a revista e eu ainda não tivera ideia nenhuma de conversa. E então aquela menina ficou bem perto de traçar a minha morte.

Ela simplesmente começou a cantar Bob Dylan. Make you feel my love. Assim, bem baixinho, mas tão afinadinho… Coberto de razão, meu monitor começou a apitar enlouquecidamente mais uma vez.

_Você está bem, Lucas? -de novo, esse L. Como ela pode fazer isso parecer atraente?

_Não, tá tudo bem. Pode ficar tranquila -respondi. Eu gostaria de completar com “é só você não chegar perto de mim, senão isso aqui vai explodir”.

_Porque seu monitor começou a apitar? -perguntou-me com uma curiosidade genuína.

_Porque você estava cantando a minha música preferida -envergonhei-me com essa resposta. Melhor a verdade do que mentir, eu minto e esse monitor explode.

_Você também gosta do Dylan? - eu vou banir o L do vocabulário dessa menina, juro que vou.

_Como eu disse, Make you feel my love é a minha música preferida.

Seus olhos brilharam de novo. Daquele jeito infantil, desejosos por engolir o mundo. Acho que foi aí que eu ganhei ela, já que ela arrastou sua cadeira para perto do meu leito. Conversamos muito sobre quase tudo.

Ela me contava que gostava de ler e que queria ser veterinária, mas que não suportava ver bichinho nenhum sofrer. Tinha medo do escuro na madrugada, mas não temia a morte. Tinha dezessete anos, mas era tão mista, tão única e tão completa que parecia atemporal para mim. Se me contasse que tinha doze, eu acreditaria, mas se me dissesse que completara trinta anos mês passado, eu a pediria em casamento sem questionar nada antes. Queria mudar o mundo, sentia dificuldades hercúleas para entender matemática e achava que faltava cor em quase tudo no planeta. Como eu adivinhara anteriormente, achava a minha doença o máximo. Gostava de perambular à noite pelas ruas, mas sempre voltava pra casa correndo com medo dos bêbados e drogados jogados nas vielas, via beleza até onde não tinha. Entendia de muita coisa e conversar com ela era exatamente como se transportar para outro mundo, um lugar onde só existisse nós dois. Pura magia juvenil.

Falei também sobre mim. Contei que eu era viciado em adrenalina, logo ter um problema no coração era o maior veneno para quem gostava de apostar pegas de noite na estrada e fazer exercício físico. Contei que meu maior estigma eram os filmes de terror -que por acaso ela também gostava-, contei que eu não conseguia mentir sem ser pego porque meu monitor iria apitar sem parar. Falei pouco. Falei pouco porque eu gostava mesmo era de ouvir Clara falar. Vez ou outra eu fingia esquecer um pedaço da letra de alguma música do Bob Dylan só para ela cantar pra mim. Já eram oito da noite e em uma hora alguém ia aparecer no quarto e começar a me preparar pra cirurgia.

_E se apaixonar? Você nunca vai poder se apaixonar por ninguém com um coração desse jeito. -ela me perguntou.

_Por quê o interesse? Você por acaso quer fazer meu coração explodir? -brinquei.

_E se eu quiser? O que eu preciso fazer pra te matar?

_Chegar pertinho de mim. -sussurrei.

_Eu duvido. -ela fez uma careta de incredulidade.

_Quer testar?

_E se eu te matar?

_Você vai ter matado um cardíaco com vício em adrenalina. Você não pode se culpar por  ter dado a última dose que matou um viciado.

_Você é doido. -ela riu.

_Sabe qual o bom de ter um coração tão ruim? As emoções são mais fortes. As sensações são melhores.

_Realmente. Viciado em adrenalina.

_E você não vai me dar uns trocadinhos pra eu comprar minha droga, moça? -peguei na sua mão e meu coração já sentiu o drama. O monitor voltou a apitar rapidamente. Foi um pequeno choque e logo meu coração já havia voltado ao normal. Clara se encantou pelos arrítmicos bipes do meu coração inquieto.

_Vai se matar desse jeito, Lucas.

_Então me mata, vai.

Clara me olhou daquele jeito tentador de menina. Tirou a sua mão da minha e pousou-a em meu rosto, sorriu de um jeito perverso, do jeito que um caçador olha pra presa. O monitor protestou. Meu coração entrou em um ritmo frenético. Ela riu disso, divertia-se brincando com a minha vida e com o meu coração de um jeito metafórico e literal que jamais foi visto. Aproximou seu rosto imaculado do meu e pude sentir sua respiração quente se enlaçando na minha e provocando ciclones pelo quarto. Meu coração se apertou todo na caixa torácica, sabia que aquilo era a minha droga chegando em uma dose terrivelmente alta e pura. Falhou uma vez. Eu gemi e ele voltou a bater rápido demais. Minha cabeça inflou como um balão e eu me senti leve, até que seus lábios encontraram os meus. Aquilo era demais para mim. A minha língua procurou a dela e conheci todos os idiomas do mundo com toda a doçura que havia naquele beijo, tive vontade de trazê-la mais para perto, mas não pude. O coração não deixou. Falhou uma segunda vez. Clara percebeu, parou de me beijar e tocou a campainha das enfermeiras. Sorriu mais uma vez perversamente. Deixou um beijo na tez da sua avó e saiu correndo porta a fora sem nem se despedir de mim. E se eu morro ali?

As enfermeiras chegaram e correram comigo para a sala de cirurgia. Os médicos consertaram meu coração, mas eu nunca mais vi Clara porque ela não havia se apaixonado por mim.

De tantas formas esquisitas, aquela menina se apaixonou pelo meu coração doente. Agora que se encontrava inteiro, já não fazia mais sentido me arrancar suspiros ou me deixar sem ar.

Najla Brandão

dedicado à Sarah, por ter me dado forças e incentivo para colocar essa ideia no papel.

“Tentava cativar de tudo um pouco, pra ela já valia qualquer sorriso esquisito arrancado no meio da noite. Entre um cigarro e outro, uma trepada e outra, uma paixão e um amor; lá estava ela, tentando arrancar qualquer gemido de satisfação. Como se todos esses gozos fossem tornar a sua felicidade menos clandestina. Acabava por se encontrar nos famigerados sorrisos. Vez ou outra ganhava um coração, mas era preciso muito mais do que meia dúzia de palavras para se apaixonar por ela. Era preciso devorá-la com olhos, boca, dentes, unhas, suor e compaixão. Principalmente compaixão.”
Entre Laços, Capítulo "Nala" - Najla Brandão

Leonor



Tinha no olhar uma expressão vazia e de profunda tristeza, como a de quem perde alguém ou algum momento muito importante. Tinha no peito a saudade de um amor não consumado. Sentia muita falta de quando sua vida pertencia mais à si mesma. Leonor suspirou.

Tomou pena, tinteiro e papel em um último ato de desespero, a última tentativa de sentimentalizar a imensa escuridão do nada. Era madrugada e os pássaros já não cantavam, silencioso e amedrontado, também era seu coração. A janela aberta, tão escancarada, sorria irônica para Leonor. Com ar melancólico, a mulher se repôs a escrever sua carta.

Retomava Pandora em suas palavras, dizia dos males do mundo, das pragas dos homens, das angústias sofridas e sentidas na pele tantas vezes. Lembrava das inúmeras vezes que sangrara silenciosamente em seu quarto trancado, das vezes que se precipitara à janela por meia dúzia de incompreensões, não só da vida, mas do tão famigerado amor! Sentia a temperatura equivalente de suas lágrimas que delineavam o seu rosto para ir de encontro a seu sangue viscoso, sentia seu coração rasgar-se e estourar-se de inimagináveis formas! Pôde sentir o ódio consumir seu próprio amor em enormes labaredas vermelhas! Outrora tão puro, tão belo, tão inocente! Jamais encarnado em seu alvo, que insistia em brutalizá-la, desfazê-la, caracterizá-la como monstro, demônio, bruxa e maldita! E mesmo no meio de tantas injúrias, declamar amor e perfeição como um ato de bondade e misericórdia coma  pobre alma de Leonor.

Leonor, tão desafortunada mulher, que insistia em amar as qualidades de quem lhe sugava apenas as virtudes e apedrejava os defeitos que pertenciam a outros tempos…

“O pior cego é o que não deseja ver” -recitou em suas trêmulas palavras escritas à tinta.

Abriu os olhos e suspirou. Inalou todo o ar que podia. “Deixarei de ser cega, pois” -pensou consigo. “Eis aqui estão: a sua podridão, a sua carniça, a sua escória! E mesmo em meio a tantos desmotivos, nem por um instante deixei de amá-lo. Cuspo em cima de tudo e desejo-lhe que volte ao seu inferno maldito! Exclua-me de todas as tuas palavras maléficas. Elas machucam, Eddie, mais do que qualquer maldade minha já foi capaz. Hoje deixo a cegueira e me entrego à paz sombria. Espero de ti a hombridade de escurecer também teus olhos esbranquiçados pela loucura e ignorância!” -foram essas as últimas palavras rabiscadas e declamadas por Leonor.

Ela sentou-se na janela irônica. Tomou um último gole. Um pintarroxo entrou no quarto e sibilou baixinho, curioso. Leonor lera que pintarroxos eram pássaros confiáveis. Soube então que era a sua deixa, um sinal.

Enquanto o pintarroxo voava pela noite demasiadamente escura, a existência da mulher deixava fio a fio a vida. Abrira seus olhos e percebeu-se cercada pelo vazio, verificou que em seu peito já não havia mais um coração latente. Teve certeza de que voltara a ver. Pura e simplesmente nos braços de uma velha amiga.

Najla Brandão



Cara Sallie,

Tive notícias de suas frustrações, soube que anda um pouco aborrecida com meia dúzia de coisas que te aflige. Pois saiba que entendo um pouco dos seus aborrecimentos, não é fácil ter um espírito tão leve como o seu. Sua alma canta tanto quanto suas cordas vocais, tal qual passarinho na gaiola impedido de voar. Um canto triste. Bonito, mas triste. É uma tristeza feita de pluma, pra quem tem alergia é terrível, mas tem um tom poético que nos faz refletir e mergulhar em metáforas.

Sadie, lembro-me de quando nossos caminhos se entrelaçavam ainda na selva de nossas palavras. Não que eu ache que as minhas tenham a fluidez das tuas ou o sentimento, mas acredito na sintonia de ambas. Posso não ter o mesmo léxico abusivo seu, mas é uma questão de estilos literários. Minhas raízes se agarram no arcadismo enquanto sua alma zela pelo barroco. A natureza e a dúvida, duas divindades do homem. Estou muito errada sobre isso?

O mundo nos trouxe dificuldade, mas eu cuido de você. De longe, mas cuido. É assim que gosto de tomar conta das coisas, sem que ninguém saiba, pois quando estou por perto o mundo costuma se desfazer com as minhas falhas. A benção do ano é que venho reconstruindo e em breve serei tão boa quanto você, tão altruísta e leve como transparece ser. Não é porque eu desfiz o destino de algumas vidas que isso vá significar a morte súbita da nossa amizade não vivida. Fiz algumas escolhas, outras fui forçada pela minha insanidade negra a tomá-las, mas me arrependo muito pouco. Com cada passo em falso eu me aproximei um pouco mais de ser boa, de praticar o bom carma. Dificultei muitas vidas, caí muito, mas tenho certeza que também ensinei muitas pessoas a levantarem, a questionarem suas crendices imaturas, a abaixar a cabeça diante da arrogância e prepotência que cresciam por dentro. Aprendi a ter humildade, a não pensar que sou melhor que o mundo, mas a trabalhar para ser tão incrível quanto o mundo é. Reconheci do que sou capaz e do que as outras pessoas são capazes. Sallie, eu corto, mas eu curo. Eu sou a mão que dilacera para depois fazer curativos. A minha natureza é simples para quem tem o peso do ar.

A gravidade nunca nos prendeu ao chão. Nós somos irmãs, Sallie, só não sei te explicar quando teremos as nossas vidas de volta. Até lá eu espero ansiosamente por sua resposta e peço perdão pelas palavras rasgadas ou por ter jorrado meu sentimentalismo -tão meu!- para você ler, sou aberta demais.

Um abraço de quem muito agrada de ti,

Najla Brandão



Minha avó dizia sempre que quem tinha uma pinta na palma da mão era uma pessoa afortunada, com um destino rico, felizardo e recheado de sorte. Eu sempre achei essa crendice uma bobagem completa, assim como tomar leite e comer manga ou ficar vesgo enquanto o galo canta, mas aí você veio. Você, a sua sorte, a sua fé e a sua pinta na palma da mão. Aquela pintinha é só mais um dos sinais de que você foi abençoado por todos os tipos de divindades existentes no mundo, é uma marquinha de Deus dizendo o quanto ele é seu fã. Não têm como as coisas darem errado pra você, elas se acertam até nos momentos mais difíceis. O mundo sorri demais pra ti, contagia e dá um arrepio na gente só de pensar nisso; queria te falar o tanto que a vida é leve com a certeza de você aqui e do seu jeito constante, mas imprevisível. Nós sempre fomos imprevisíveis demais. Meu nome com letras de menos, o seu com letras demais; eu solta pelo mundo, você solto no sentir, mas a gente tá sempre junto. Nos braços um do outro ou jogados por aí, nós sempre nos pertencemos. Somos donos de si, donos de nós e, quem sabe?, até donos do mundo. Sempre parece que o universo é pequeno demais para nós dois, não é possível caber tanta coisa boa em tão poucas dimensões. Pelo menos a nossa teimosia nos trouxe à algum lugar… e que lugar! É de tirar o fôlego a vista daqui de cima, e pensar que ainda temos tanto pra subir! Puxa vida. Segurar a sua mão sortuda é tão bom quanto apertar as mãos do destino, mas tem a vantagem de ter sempre boa companhia, boa prosa, bons abraços, boas piadas. Pensando bem, segurar a sua mão é melhor que qualquer coisa que essa vida terrena possa me oferecer. Melhor que as minhas notas de cinquenta no fim do mês ou que comer alguma coisa diferente durante a semana. É, parece que estar em suas mãos é o melhor dos destinos para mim. Um destino para amar.

Najla Brandão

Com sorte a gente colhe bons frutos. Com muita sorte não vamos ter tantas frutas podres para jogar fora. As coisas vão e voltam. O importante é aprender a aceitar ou conviver melhor com isso. A gente nunca sabe o dia de amanhã, mas eu torço toda noite para que eu tenha dado o meu melhor no dia, ter lidado com cada conflito da melhor maneira. Eu tento falhar menos, ser menos passível de imbecilidades. A grande verdade é que não dá. Às vezes sinto que estou muito brava com tudo isso e ajo de maneira irracional e não condizente, arriscaria dizer a palavra “burra”. Até mesmo com a maneira como não ando ganhando o meu e como isso me afeta tanto, parece piada esse meu “conviccionalismo”.
 Babi em O violão, o cigarro e o whisky, livro que prometo terminar de escrever algum dia.



Antônio era do contra. Gostava de fazer tudo diferente. Era policial quando o mundo todo se fazia de bandido, se no trabalho o pessoal pedisse pizza pro almoço, Antônio queria uma salada Caeser. E assim ia.

Era casado há trinta anos com a mesma mulher. Isso mesmo: mulher. A mesma durante trinta anos! E tinha cinco filhos com ela. Ninguém tinha tantos filhos, já consideravam insanos quem ousasse deixar de ganhar dinheiro pra colocar uma criatura no mundo, quem dirá cinco! Cinco catarrentos correndo pela casa toda!

Vivia longe do centro da cidade, imagine que loucura viver longe de tudo com essas inúmeras doenças silenciosas que afetam o mundo de hoje? Vai que sua esposa dá um ataque cardíaco fulminante de nível seis? Como leva a coitada pro hospital a tempo? Fica tão longe…

Ninguém entendia a cabeleira do Antônio, qualquer homem com mais de trinta anos já tinha um problema sério com a calvície e teria entrado numa guerra eterna com os fios de cabelo que se direcionam ao chão. Antônio, no auge dos seus 56 anos, ainda tinha os tufos de cabelo fartos e negros. Negros! Dá pra acreditar? Diz Antônio que foram as sementes de abóbora e os bifes de fígado que havia comido na infência que prenderam seus cabelos na cabeça.

Uma saúde de ferro, tinha o homem. Adoecia quase nunca e, no pior dos casos, era apenas uma gripe forte da estação. A maioria de seus colegas já tomavam uma mão cheia de comprimidos pela manhã só pra sobreviver. Tinha também uma tal de “infância feliz”. Mas o que diabos era essa brincadeira de “bolinha de gude”? “Peão”? Qual a graça de rodar um toco de madeira?

Mas a parte mais estranha de Antônio era sua felicidade. O bastardo estava sempre sorrindo, sempre satisfeito com a vida, com o trabalho e consigo mesmo. Todos pensam que, na verdade, ele é um psicopata e que vai pular de trás da mesa do escritório e matar todo mundo, ressentido com o universo. Afinal de contas, quem sorri e fica contente em ajudar o colega de trabalho num caso difícil de fechar?

Ninguém entendia Antônio. Ele não falava de binários, nem sobre a Bolsa e não gostava de computadores. E vai saber porque ele torcia tanto para um time enquanto assistia uma partida do falido futebol brasileiro, ou então porque ele ficava alegre quando sua esposa lhe contava uma piada sem graça nas festas do trabalho.

Antônio era, por fim, antônimo demais.

Najla Brandão

Cartas para Tarcísio, João, Jorge e quem mais que há de ser simples na alma e no nome





Mais uma sem selo. Não dá, Tarcísio, não dá pra viver assim, sem ser endereçada a ninguém e sem ser remetente. É tudo sobre mim. Dá pra acreditar que perdi até o rumo de casa? Perdi quem sou nas listas de desejos e listas de afazeres. Tem tequila na sexta acompanhada de abraços, amigos e muito vazio. Vai ter eu me cifrando, como tablatura ou objeto. De novo.

   Hoje me bateu uma melancolia. Talvez de hoje eu não passe. Atacou-me uma vontade de ir na casa de alguém e conversar sobre não sei o quê, fazer bolo para não sei quem e me encher de abraços de ninguém. Sabe o que é mais foda, Tarcísio? Não sei como sair dessa ilesa, inteira e com aquele tempero de felicidade.

   Queria um abraço que não acabasse mais e um beijo quentinho tateando a minha alma. Tô completamente apaixonada pela ingenuidade dessas crianças, a simplicidade que lidam com tudo.Tô louca com, até mesmo, a falta de ambição na vida. Ansiei demais, planejei demais, desejei demais e agora -assim como eles- não tenho mais sonhos.

   Tento não tentar esses garotos, não seduzir, não ficar atrás, porque o meu maior medo não é falhar e sim bem-suceder.  Meu medo é fazer isso e quebrar mais meia dúzia de corações. Ninguém precisa passar por tamanho sofrimento à toa. Deixem eles com suas despreocupações, namoradas de uma semana, amores de  um mês. Alguém no meu mundo tem que viver, além de mim. Meio ano já passou e ainda estou presa aos meus desatinos. Ainda sou banjo de uma corda só, tocando sempre as mesmas notas.

   Tô enxugando suor que nem existe na minha testa, tô escrevendo pra quem nunca vai ler, guardando segredos nada especiais e esperando demais a vida me levar pra onde esses pés ao meu lado apontam: para fora, para a vida -ou talvez para mim, para dentro de um eu que nem sei onde está!

   Ah, Tarcísio, se eu pudesse me decifrar. Se eu soubesse lidar com o meu mundo… Ia ser amor demais, Tarcísio. Ah se ia!

Najla Brandão

Carta para João




Acho que foi a simplicidade do nome que me encantou. João. Assim, sem complicações, como deveria ser a vida, sabe? Eu queria aquela singelez para mim, queria preencher minha complexa rede de falhas com um adesivo comum. Coisa de roça, sorriso sem dente, altura de homem do campo, sem sentimentos demais para oferecer, sem querer entender muito da vida. O bom cristão. O cheiro de charuto cubano pirateado, comprado na tabacaria da esquina.

   João. Faltando um s e um é. É como um superlativo da simplicidade. Não quero o corpo, nem o beijo; quero o abraço quente e aquela coisa de compartilhar histórias sofridas. Queria escutar os causos de terror, de amor, de falecimento, do que acontece tanto na vida comum, mas que me passa despercebido por eu ter essa cabecinha da cidade. Sempre preocupada com a cabeça e o coração que está sempre vazio demais.

   Ando imersa demais em meus problemas, João. Tanto que até aliança no dedo e namoro no sofá ando querendo. O banal, o comum, o usual. Esse tal trabalhador não precisa saber minha história. Só precisa querer meu braço e ser bem apessoado. Basta me querer.

   Bem querer…

Najla Brandão



Não sei onde tu moras, ou o nome da sua mãe, apenas suponho que não tenha irmãos, e que você tenha os olhos do teu pai. Sei decifrar todos os seus tons de voz, o seu jeito aberto demais de olhar para os outros, a sua mania terrível de manter distância quando estou perto e se manter por perto quando estou longe.

Estou acostumada já com teus descompassos, talvez por eles andarem tão sincronizados com os meus. Eu dou um passo para frente e tu um para trás, eu vou para trás e você vai pra frente. As vezes andamos de lado, é quando a imparcialidade nos pega nos fins-de-semana e noites de domingo, andamos de lado até nos encontrarmos. Não decorei teus cheiros, ou teu gosto, nem o toque da tua mão; mas eu consigo me lembrar de todas as suas expressões, e do  formato desejável do seu corpo perto do meu, mais que isso tudo, eu consigo me lembrar o quanto acho tudo isso engraçado.

Eu queria ter vontade de lutar por nós dois, queria ter vontade de correr atrás, quebrar a cara, tentar. Mas eu não ando tendo vontade nem de lutar por mim, ando me afogando numa lagoa gigantesca de chumbo líquido. Envenena, paralisa, corrói, dói. Dói por dentro, aquele soco no estômago que eu não sei se foi causado por mim ou por você. E eu gostaria de lhe contar sobre isso, compartilhar minhas dores. Queria também ter certeza sobre o que é essa merda toda, entende? É que sei lá, cara, é um dia apaixonada e outro não, um dia te desejando na minha cama, outro dia quero consolar-te dos teus romances esvaidos, um dia atravessando o inferno para “casualmente” encontrar com você, no outro dia sem nem querer ter notícias suas.

Cansei-me de lhe tentar, de lhe procurar; sei que nem comecei a fazer isso, mas eu preciso do tato da alma. A tua alma enconstando na minha, nossos fôlegos sendo tomados por sentimentos -não um pelo outro, mas pela vida. Diga-me que o que tu passas é o que eu passo. Estou a tentar-lhe por estar tão louca e obcecada para que eu goste de alguém. Estás assim também? Está querendo dar passinhos em minha direção para que talvez consigas gostar de mim? Porque se for, poderemos dar as mãos contar um para o outro histórias sobre as nossas cicatrizes. E então, mesmo que não se faça amor, faremos confiança. Teremos coisas bonitas para sentir.

Najla Brandão


Alice,

   Hoje escrevo para você sem a intenção de consolá-la de teus tormentos, mas com a intenção de aliviar meus fardos e contristações, esse atrito que me fadiga.

   Ah, Lice! Estou cansada da ignorância; desse eterno ensinar e nunca aprender. Já disse que preciso sossegar e ficar numa sofreguidão silenciosa e solitária, mas não consigo pois eu também sou feita de carne fraca e quero ajudar todas as almas perdidas, vendidas e leiloadas. É um sonho pesado e torto, mas alguém tem de sonhá-lo, talvez assim chegaremos à um momento em que -quando olharmos ao redor- veremos sapiência e vontade ao lidar com a vida, veremos sentimento nos olhares e não só nos números. Estou cansada de ensinar a sentir, a fazer sentir.

   Quem me dera tudo fosse literatura! Tudo fosse rimas e todos poetas. Bobagem minha falar isso como se eu não me orgulhasse e fizesse questão de carregar nos ombros esta minha alma sobrecarregada e gorda de tantas coisas guardadas; de tantas más lembranças encardidas e enrugadas, amassadas.

  Os dias têm ficado nublados, Alice, mas pouco vi de chuva. Para lhe ser sincera, não vi absolutamente nada. Não se libertou nem uma mísera gota do céu pesado, e eu sinto falta, sabe? Quero molhar-me e refrescar-me, parece que parte de todo esse peso se esvai. Parece que o silêncio morto em mim, se cala.

  Não, Alice, não estou a contradizer-me. O silêncio ao qual me refiro no início desta carta, é um silêncio querido; ausentado de exaustão. Agora devo dizer-lhe que um silêncio morto é um vazio que dói. Dói até. Dói por serem tão poucas pessoas que são missionárias como eu e que compartilham comigo essa missão de semblante tão encantador.

   Tenho procurado os frutos mais maduros, os corpos mais doentes,  as mentes mais senis. E isso com um desejo absurdo, mas não posso. Está terminantemente proibido eu me aproximar de mais alguém e quebrar seu frágil coração.

   Alice! Eu quero chuva, quero amores; inteligência sem preguiça. Quero o inapropriado, mas cabível: que caiba em mim. Que se encaixe perfeitamente na minha cabeça, na minh’alma e no meu corpo pequeno. Porque Alice, qualquer um agora virou pretexto para que eu possa sentir amor. E de amor tenho sentido apenas amizade, o único amor que faz sentido.

Um beijo saudoso de sua aliada.

Najla Brandão


_Quero uma lipoaspiração aqui.

_Aqui onde? Na barriga?

_Não! Mais pra cima!

_No peito a gente faz é redução mamária, senhora.

_Tu não entende nada mesmo… É aqui dentro. Bem no meio.

_Coração?!

_É!

_Mas não tem gordura para tirar daí!

_O senhor tem razão, o que tem aqui dentro é ódio da sociedade.

João Falconi, um dos meus muitos personagens.




Deus,

Se é que você ainda me guia. Se é que ainda me escuta. Se é que… Ah. Quero pedir perdão. Talvez eu esteja pedindo para a pessoa errada, mas se for tão bom assim passará a mensagem para as pessoas certas. Desculpe-me por ser essa andarilha errante, esse pêndulo transviado; por ter tantas atitudes irresolutas, pelas tantas condolências de mim mesma que carrego, por tanto lhe contristar, por tanto vos deixar desgostoso, pesaroso, enfastiado. Deu-me o remo e o barco, mas não me ensinou a remar, a me amar, a não me perder no mar. Destes a mim meus amigos, meus anjos; destes a mim tantos amantes presos por correntes aos meus desejos, às minha bobagens, aos meus sorrisos. Destes a mim uma destas almas enfadonhas e difusas e o que faço com tudo isso? O que fazer com essa falta de cautela comigo e com os outros? Preciso largar. Deixar tudo para trás, ir viver dos meus sucessos e êxitos. Esquecer os meus fracassos. Preciso de um sorriso teu, Deus, um pequeno amuleto do destino. Só uma lembrança para me dizer: ainda estou aqui por ti.

Najla Brandão

11/07/2011

Do outro lado da porta



     Eu a via sempre rindo com amigas, mas havia um quê de solidão naquelas risadas. Tinha apenas uma amizade de verdade para quem dava um sorriso torto, assim de lado, meio triste e chorava em silêncio no ombro dela. A amiga nunca perguntava o motivo.
     Quando a amiga não estava no quarto dela, ela se unia à porta. Lamuriava e resmungava sobre a sua vida que era boa demais de viver. E a porta respondia: rangia de cá, de lá. As vezes se fechava e deixava as duas a sós.
     Certa vez se queixava sobre um amor irrealizado. Aliás, era só disso que ela reclamava. Sua vida era tão boa. Ela se sentia aquela parte que ninguém sabia cantar de uma canção. Mas as vezes sentia, sentia que no som do coração de alguém, o seu nome ricocheteava entre os versos. A porta rangia baixinho, como se sussurrasse, toda vez que ela lhe contava essas loucuras. Às vezes chegava perto de um telefone público, discava um número qualquer e esperava que fosse a pessoa da canção quem fosse atender. Nunca era. Era só gente apressada e sem humor.
     Um dia achou um sombreiro pela rua. Daqueles de mexicano. Se perguntou durante horas: quem iria querer se esconder do sol? Se perguntou se a pessoa que perdeu o sombreiro, na verdade o largou perdido e comprou um guarda-chuva. Mas se perguntou de novo, porque alguém iria se impedir de lavar a alma?
     Levantava sempre às duas e três da manhã, tomava um copo d’água, dormia. Se revirava na cama com uns sonhos bons, outros ruins. A maioria ela nem se lembrava. Às vezes quando se levantava, tinha medo de ir até a cozinha. Não sabia se era medo do escuro ou da solidão.
     Escrevia o que sentia em sacos de pães, contas, revistas rasgadas, cadernos velhos. E guardava. Guardava tudo numa caixa pra quando quisesse lembrar do que viveu.
      Chovia, ia até lá fora e corria para as ruas, rodopiava entre as árvores e as poças. Voltava pra casa e a porta rangia em reprovação. Ela suspirava e deitava, molhada mesmo. Depois tomava um banho, um whisky, um táxi e ia pra um lugar qualquer. Conhecer gente nova. Ficava com medo, voltava pra casa e lá estava a porta, rangendo novamente.
      Tirava foto do nada, do torto, do direito, do reto, da estrada, da samambaia retorcida. Conhecia lugares e as vezes nem se lembrava quais eram eles, eram tantos afinal. Gostava de lugares calmos que não eram como a sua vida agitada cheia de paixões insensatas.
      Por isso passava horas brigando e discutindo com a porta, ela dava opinião demais na vida alheia. Com toda a sua imposição e ar de quem sabe pra quem deve se abrir.
      E se amava. Acima de tudo se amava. Pois só ela saberia dizer quando abrir as portas para o mundo.

Najla Brandão

01/04/11

Do outro lado da rua




    Ah, mas ela se encontrava, garçom, se encontrava o tempo todo. Estava ali sempre escondida no sorriso bobo do menino apaixonado e no abraço da amiga. Sempre topando com ela mesma por aí. Costumava seguir a linha, sabe? Mas às vezes se deixava levar pelas ruas mal mapeadas da cidade. Às vezes ela se preocupava demais com o rumo que a aquela calçada ia tomar e acabava voltando para casa.
    Fazia o que das idéias brotavam, tinha vez que acabava indo parar lá onde a minha mãe trabalha. Lugar infeliz aquele. Estranhamente ela não se encaixava atrás das grades por ser livre demais. Não se prende passarinho como aquele dentro da gaiola. Era livre como sua própria vida.
     Tinha necessidade de viver a vida do outro. De ajudar alguém a encontrar seu caminho, ora porque se sentia só, ora porque precisava encontrar seu próprio caminho. Brincava de esconder a mecha de cabelo atrás da orelha, de sorrir com os olhos e de fazer mistério com o que sentia. Dizia que não amava ninguém, mas os olhos dela denunciavam a dor de um amor nunca vivido. Sonhava muito com o que o destino guardava, mas nunca quis saber o que era. O importante era o presente, sempre foi. E ela está certa.
     Cantarolava as canções da rádio local, lia livros e jornal com uma caneca de café ao lado, notícias e mensagens tão vazias quanto a caneca ao fim do jornal lido. Era muito famosa na cidade, pelo menos na cabeça dela. Sentia que precisava ser alguém na vida de alguém. E às vezes se perguntava se esse alguém não deveria ser ela.
     Mudava de humor como mudava de sorrisos, de braços e de abraços. Chegava a sentir quatro coisas intensamente durante um dia, mas pelo menos duas delas era perene, pra vida toda.
     Volta e meia se encontrava com um velho amigo, fazia as velhas piadas, contava os velhos casos e sentia que precisava de um novo amigo, mesmo sabendo que havia apenas uma semana desde que o tinha conhecido.
     Se deixava levar algumas vezes por opinião de uma amiga que não conversava há meses. Já tinha sido seduzida pelas pílulas espalhadas na gaveta. Já tinha sido vítima de perseguição em cento e oitenta cidades diferentes. E você sabe o que eles diziam ao soltá-la? Que ela era livre demais!
     Quando a manhã chegava preguiçosa demais no domingo, ela se levantava às cinco, colocava a melhor roupa e ia bem calminha para o banco do quintal. Ficava lá o dia inteiro. Vendo o sol rodar.
     Quando perguntavam do ontem para ela, quase sempre ria. Ria, mostrava um daqueles sorrisos soltos irresistíveis e gostosos, gargalhava alto. Então saía dali. Não tinha medo do ridículo.
     Contava muito sobre seus lindos sonhos delirantes, mas eram todos mentirosos. Os verdadeiros guardava tanto para si que às vezes chegava a negar a existência deles para sua própria consciência.  Andava pela calçada despreocupada, tinha vez que esbarrava nas pessoas, atropelava um cachorro, nada grave. Mas sempre, sempre ela olhava para os dois lados da rua antes de atravessar.
     Suas gavetas eram organizadas, seus armários entupidos de comida, sua cama sempre bem bagunçada. Gostava dela bagunçada, a sua casa era seu reino.
     Encantadora aquela garota, garçom! Falava enquanto dormia, contava seus segredos e apenas seu cachorro escutava. Acordava sorrindo, sempre. Às vezes me encontrava na rua e me dava um daqueles sorrisos tristes. Sempre pra mim. Só pra mim. Vez ou outra eu lhe retribuía o sorriso triste.
     Acordava tarde a semana toda. Nos finais de semana acordava cedinho, às oito e ia iluminar o mundo. Ela e o sol. Às vezes saía oito e meia, mas era porque o mundo merecia o atraso. E eu também.

Najla Brandão

01/04/11