domingo, 25 de junho de 2023

Viver é cru

    Lino,

    Decido te escrever enquanto passo pela Avenida Brasil. É cruzando a Praça Tiradentes à 00:20 da madrugada de um domingo que te sinto a falta. 

    Tem tanta poesia por aí, acho que esqueci como era assim me sentir viva, desperta e ter tesão pela vida. A gente fica se sujeitando a ser eco de si mesmo. Permitimos que sons monótonos e preces monoteístas encham os nossos dias que outrora foram polifônicos e hereges. Desaprendemos a agarrar a vida pelas unhas, a suspirar, a gemer, a tremer e debulhar em lágrimas de alegria por simplesmente estar em completude com a própria existência.

    Lino, viver é cru. 

    A gente se deixa esquecer que nessa crueza quem faz poesia não são os poetas pretensiosos de cachos rebeldes e narizes pontudos, somos nós. Rebelar-se é tomar a coragem de assalto e ter ousadia para se encher de si. Permitir uma não-conformidade em ser triste para sempre.

    Enquanto o carro dobra a esquina na Francisco Sales, aproveito o silêncio do motorista e da noite pra te dizer: já não choro mais de saudade. Essa palavra ganhou novos trajes quando você apareceu ali pela boemia sem razão de ser, numa esquina e num bar, como tem que acontecer. Tua chegada tem cheiro, tem sabor, tem temperatura e tem nome de quem me atormenta as palavras desde que me entendo por gente que escreve. 

    Estou feliz e quase me dói dizer isso, como se houvesse algo de proibido em estar com um cabide na cara e chamar de sorriso. Dói um pouco também por há muito tempo não saber como é que era ser assim feliz, mesmo sem muita razão. Não te atribuo os louros dessa felicidade porque a sua estadia é o fim da mesma. Você só está aqui porque eu me sinto feliz e não o contrário. 

    Mudei o sofá de lugar hoje. Parece sem importância, né? Essa troca corriqueira de um mobiliário doméstico cuja única finalidade é prestar conforto. A verdade é que mudar o sofá de lugar é também expor sujeiras escondidas e se propor a encontrar aquela embalagem de bala perdida e que era também a última memória de um amor doído. A última lembrança de que foi real. Agora é lixo. Assim abro espaço para mais um abajur e almofadas coloridas.

    Lino, a gente perde muito tempo lambendo feridas e depois é difícil perder esse hábito quando já estamos cicatrizados. Quando essa carta te encontrar na caixa de correios, eu já vou estar em seus braços aninhada e quente. Estupidamente feliz. Espero que esteja tudo bem com o seu coração. O meu eu volto a usá-lo na manga.

Com carinho e sempre sua,