quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

04:12

          Não tenho inúmeros leitores.
          É confortante saber que são poucas as pessoas que tem interesse em saber o que passa pela minha cabeça ou pela minha alma. Não me incomoda que tenha gente lá fora que sabe meu nome, meu endereço, o número do meu telefone e meia dúzia de histórias sobre mim, mas que não sabem que escrevo. Não que eu esconda esse fato das pessoas, pelo contrário, exibo muitas vezes os textos que exprimem de maneira caótica o que sinto. É que as pessoas ordinárias não se interessam. Bom que seja assim, não me interesso também por quem troca palavras por figurinhas,
         Não me leve a mal. Não que eu não goste de observar as emoções, mas é que para senti-las é necessário ter um ponto de vista, uma perspectiva. Isso acontece nas palavras. Eu não sei exato a minha motivação para escrever essas baboseiras às quatro da manhã de uma quinta-feira que mal vi passar pela minha semana entediante. Eu precisava colocar pra fora algo explícito. Essa angústia que preenche o lugar do que deveria ser um vazio existencial. Perdoe-me, mas eu já passei da fase de crises existenciais, da confusão sentimental entre luxúria, desejo, paixão e amor. Passei da idade até mesmo de duvidar do meu próprio propósito no mundo, que é nada mais que viver por viver. Sentir, presenciar, saborear, escutar, adorar os momentos que as pessoas ordinárias não dão valor. Essa minha obsessão em querer ser onipresente me leva a pequenos momentos de prazer, os momentos em que posso estar lá e não ser vista. As brigas dos casais, a tosse da madrugada, os sussurros ao telefone. Eu sei o motivo de cada uma dessas coisas, eu estava lá e era invisível. Ser invisível se tornou parte de uma rotina adorável que levo.
          Não vou ser hipócrita. A glória, sucesso, fama e reconhecimento cairiam bem em mim. Eu adoraria andar pelas ruas e as pessoas saberem dos meus feitos grandiosos, mas sejamos francos, isso é para tolos. Não vou perder meu tempo me frustrando com um sonho tolo, eu prefiro aproveitar o que tenho agora. E o que eu tenho agora é o poder de estar onde os meus olhos podem alcançar, não ser percebida, não ser escutada, acumular informações, imagens e segredos. Não usá-los. Apenas a sensação de saber demais ou de que eu poderia mudar toda uma história com o que sei já me enche de um tesão inexplicável pela minha própria vida. E então o destino me abre as portas para a minha mais nova desejada posição: a possibilidade de ser quem eu quiser em um lugar onde praticamente ninguém me conhece. Construir uma nova imagem e continuar invisível.
           Claro que não é só a invisibilidade e a possibilidade de ser quem eu quiser que me agradam. Existe outra coisa, a liberdade. Dentro dessa boêmia toda, eu esqueci de dizer que hoje eu sou livre. Sei disso porque não há nada no mundo que me prenda a algum lugar exceto o mero prazer de estar em tal lugar. Não existem pessoas, não existe amor, histórias ou conexões que eu não possa deixar para trás para viver os meus próprios sonhos. Pela primeira vez na minha vida eu sou livre. Renascida dos destroços que as minhas próprias mãos foram capazes de causar, hoje eu sou quem eu quero ser, estou perto de quem eu queria estar, indo conhecer novos mundos. Intocada e imaculada, pura e certa de que nesse exato instante não existe nenhum amor em minha vida maior do que o que eu sinto por mim. Não existe paixão que seja mensuravelmente próxima do quão perdidamente apaixonada eu estou pelos meus próprios caminhos. Não há consciência mais transparente do que a minha agora.
            Invisível, livre, renascida. Essa seria uma boa história, mas eu não tenho inúmeros leitores. Eu tenho apenas um. O único leitor que espero nunca perder na minha vida. Eu. O resto vem com o que houver de extraordinário no universo. Afinal de contas, eu nunca gostei do comum.


Najla Brandão


sábado, 8 de fevereiro de 2014

Miragens

Estou deitada em minha cama, consumida pelo silêncio da noite, a única coisa audível é o barulho dos ponteiros do relógio que, devo dizer, parecem mais altos que sinos. Viro prum lado, pro outro, mudo de posição de maneira inesgotável, mas o sono não me vem. O tic-tac incessante aumenta cada vez mais e ao mesmo tempo minha mente é inundada de pensamentos inquietantes. Fecho os olhos e  me reviro pela última vez na cama. É inútil.
Abro os olhos e me deparo com um desconhecido deitado do meu lado. Não sabia quem era, mas a sua existência me acalmava, mesmo que parecesse não pertencer àquele lugar. Suas respiração talvez estivesse em algum canto empoeirado das esquinas de Amsterdã. Tinha um sorriso bonito, a barba por fazer e gostava de jaquetas de couro. Poetizava debaixo das colchas, sempre escondido, sentimentalizava cada pedacinho de natureza: uma árvore torta, uma poça de água, uma brisa carinhosa. Tinha um espírito de menino preso num corpo de homem feito, vinte e três anos, quase formado em alguma engenharia, mas não exercia. Prefere a paixão das palavras. Gosta de pimenta e qualquer coisa que queima, até sua torrada é mais morena que a minha. Soube disso antes dele dizer qualquer coisa. Soube também que me esperava há anos. Eu me mexi e abri a boca.
_Shiiiu. Não faz barulho. Vai acordar ele. -falou.
_Acordar quem? - sussurrei.
Ele pegou a minha mão e colocou em seu próprio peito. Seu coração quase não batia, parecia dormir um sono tranquilo. Os olhos castanhos do estranho na minha cama me encararam enquanto a minha mão ainda repousava em seu peito. Os lábios roxos se molharam com o movimento que sua língua fez para umedecê-los, tinham aquela cor de terra roxa e agora parecia terra roxa regada. Ninguém poderia saber o que iria nascer dali. Poesia, eu diria. Poemas feitos na madrugada para desconhecidas na cama.
_Fala comigo, mas fala baixinho. -ele me disse.
_Falar do quê?
_Não sei. Me conta das suas coisas.
Eu contei. Eu não sabia sobre o que falar, então falei sobre qualquer coisa. Contei da vida que levei, das viagens que eu nunca fiz, dos sonhos que parei de perseguir pra viver a vida comum.
_E porque você não foi pra Índia?
_Não tenho dinheiro. Nem coragem.
_Você não precisa de dinheiro. -ele rolou os olhos daquela maneira adorável que tinha feito enquanto contava dos meus fracassos. - E eu posso te dar coragem.
_Por que faria isso?
_Por que eu posso e eu quero. Você tem muito pra viver, não tá velho como eu.
_Tá velho onde?
_De coração.
_Me conta das suas coisas.
Ele me olhou de um jeito que me deixou sem graça, abaixei meus olhos. Escutei ele respirar sobre os meus cabelos e cochichar segredos. Era um sotaque estranho cantado ao pé do meu ouvido, não agradava a primeira vista, mas confortava.
_Por que você veio?
_Por que chamou.
_Mas eu não te conheço.
_Nem eu me conheço.
_E você fica?
_Agora que você falou em ficar eu tenho que ir.
_Vai pra onde?
_Eu não sei.
_E você veio de onde, moço?
_De onde você acha?
_Daí? -encostei o indicador no seu peito.
_Droga, você acordou ele.
O quarto foi inundado por um barulho ensurdecedor de batimentos cardíacos acelerados. Eu fechei meus olhos instintivamente, querendo que o barulho parasse. Ele diminuiu e eu abri os olhos. Não havia mais ninguém na minha frente. A única certeza de que ele esteve ali era a bagunça na minha cabeça e o tic-tac incessante do relógio.


Najla Brandão