quinta-feira, 20 de setembro de 2018

É que a vida não para e ainda avança

Photo: Dear Love w/ Noah Centineo by Sarah Bahbah



    Hoje o coração acalmou. Aceito enfim a impermanência do ser e do estar. Contemplo que o presente, viver o agora, exige muita coragem e é por isso que gastamos tempo demais pensando no que pode vir a acontecer invés de focarmos no que está existindo nesse exato instante.
    Não sou sua.
    Você não é meu.
    Fatos.
    Na minha lista de coisas para conquistar um dia na vida você é o último item. Pretensiosamente, de maneira descarada e absurda eu gostaria (e muito) de me infiltrar em tudo que quer dizer sobre você. Eu quero saber mesmo qual seu dia predileto, quem foi a sua pessoa favorita do dia, que livro que mexe com seu coração e que música te acalenta. Eu quero saber dos seus cafunés, o que te arrepia e quando é que foi que você percebeu que tava apaixonado por ela. Ao mesmo tempo eu me pergunto se isso tem cabimento dentro do que a gente não é e deixa de ser todo dia por acidentes geográficos. 
    É que a vida não para e ainda avança. É por isso que te chamo pra conversar de tardinha. É por isso que faço questão de checar se você tá bem. Independente do que a gente (in)significa de fato um pro outro, a vida não para e só avança. Amanhã você pode estar apaixonado por outra mulher ou desinteressado em me ter por perto; semana que vem pode ser que você esteja aqui ou em lugar nenhum por uma fatalidade qualquer que evidencie a fragilidade patética da vida humana. E então vai ser tarde demais para te dar os carinhos que prometi, o ombro pra chorar, os hinos de exaltação à sua beleza, a minha voracidade em devorar-te inteiro na cama e na alma. É tarde porque a vida não para e só continua. E até você achar esse texto, até você ler ele, a vida já avançou mil vezes e eu toquei seu coração. A vida avançou mais outras mil vezes e eu fiquei para trás numa memória longínqua e borrada com quase nenhuma emoção de reviver.
     A vida não parou e eu me tornei o meu maior pesadelo de ser líquida, efêmera e volátil para alguém que inundou meu peito com água e me deixou as lembranças solitárias de como é se afogar sem ver que pode morrer de amor ali mesmo se ousar inflar os pulmões mais uma vez. A vida não para. E você não parou nada por mim. A vida avança. E nos come pelas bordas, roendo nossas pretensões de ser e deixando as migalhas do que intencionávamos de verdade, mas não expusemos para manter as aparências de que temos todo o tempo do mundo para nos resolvermos. Mas não temos. A vida avança.  A vida avança e eu perdi noção de quem é o você que eu criei com esboços da minha memória, para me perder em quem você é na sua espiral particular de especificidades (tipo suas covinhas e seu jeitinho alegre de ser  meio melancólico). 
    A vida não para, sabe? Ela avança em ondas sobre a areia da praia, revirando tudo trazendo e levando de volta nossas coisas. E trouxe minhas palavras que juntas a algumas conchas e algas aparecem vez ou outra para enfeitar poesia sobre gente bonita. Bonita por dentro. Por fora. Por todos os lados e ângulos. Mas o mar também recua. Minhas palavras também. A vida não. Ela continua. Implacável. Irreparável. Irrefreável. E agora ela pede um colo que não tenho a menor ideia se vou ganhar. Agora implora por amor e afeto que eu já esqueci como que se distribui sem me atropelar por inteira e agora perco horas me perguntando se em tempos modernos vale a pena se apaixonar. E se a gente se apaixona? Ainda dou conta de sentir isso? E se dou conta, vai ser daquele jeito insano e urgente que amor pede? Aquela loucura de matar e morrer por amor? Hora dessas eu só quero a calmaria e a tranquilidade de que vou ter um peito pra deitar e meia hora de conversa de travesseiro antes de dividir as cobertas.
     É nessas incertezas que me afundo. Inspiro e expiro. Então espero a vida me avançar por completo. 

Najla Brandão

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Subversão




        _Cara, vaza da minha vida. 'Cê tá me matando aos poucos.
Era isso o que eu tinha vontade de falar no meio das fuças dele.
Tinha esse rapaz. Ele sentia coisas muito bonitas e também sabia brincar com as palavras. Ele não tem nome. Ninguém que não faz morada no meu coração possui um nome, mas ele tinha o vento nos cabelos e um nariz engraçado. Isso pra mim bastava. Chegara há pouco tempo e me roubou alguns suspiros, mas ficou na soleira da porta, eu não o convidei. De rebatida não me pediu para entrar, disse que prefere conversar ali na porta mesmo, se fosse o caso a gente podia ir na livraria tomar um café juntos. Eu não vou.
Não vou porque já andei muito chão, já vi muita malícia escondida debaixo de lindos cachos. O que posso dizer se sou perfeitamente vacinada contra esse tipo? Isso não quer dizer que não vai me roubar um beijo ou outro. Sou uma colecionadora de carinhos. Isso só significa que não vai ter amor depois do café e nem promessa de um romance incorrigível quando terminarmos de fumar o cigarro mais ferrado do país.
Rapaz do tipo poeta que chama só pra ver se a gente vai. Não tem pretensão nenhuma de ficar por perto também. Jack camaleão que hoje tem em mim seu esconderijo e amanhã já muda de cor e de ares. Entendo que a intenção pode até ser das melhores, mas desconhece os segredos de seu coração e sempre cai nas próprias armadilhas. Pois venho dizer que também sei me camuflar, mesmo que seja de gente que decifra metade de mim sem precisar de esforço. Há outra metade que se faz mistério, que se esconde nos armários e que não sai pra brincar nem se alguém chama. Sempre vou estar preocupada demais escutando Amélie Poulain enquanto ele deságua um narcisismo crônico que beira a ser doente. É muito fortuito que nesse caso eu adore uma doença. A cada fincada no peito, dor localizada de cabeça, cólica, músculo que dói eu penso que estou morrendo. No próximo minuto posso infartar, meu aneurisma se romper ou meu câncer atingir nível 4 de metástase. Basicamente é isso que me move. Saber todo dia que eu vou morrer e que todos que eu conheço vão morrer nesse dia também, faz os meus dias impressionantemente calorosos, cheio de abraços, beijos e risos. Também me deixa uns quinze por cento mais irresponsável.
Se ele vem eu o mastigo e não deixo pedaço inteiro, pode me chamar de de truculenta e sem coração, mas eu sempre avisei do meu descaso com o gostar de alguém. Chamou aqui na janela esses dias para brincar. Eu não sei brincar, quando vejo já estou machucando a rua toda e tenho uns cotovelos ralados de esbarrar no muro chapiscado de alguém. Isso não é nada para quem quebrou os ossos do corpo a vida toda e sentiu todas as facadas possíveis. Não é nada para quem sabe onde mora o inimigo e que roupa ele veste. Não acho que exista ser no mundo capaz de me fazer tombar e entortar de novo. Pensa que me tem nas mãos, mas nesse jogo eu tenho ganhado. Não que isso seja algo a se gabar, pra falar a verdade chega a ser triste, mas a vida me deu um excesso de sensatez quando se diz a respeito de sua lascívia. Mordo os lábios e ofereço dois ou três tipos de travessuras. Os rapazes se entortam, por qual motivo seria diferente com ele?
De manhã não temos remelas nos olhos, só um aconchego quente de quem acaba de tomar uma caneca de leite para suportar o dia. As frases ainda estão ressoando pelo quarto porque tem gente de coração bom e palavras traiçoeiras. Se eu mesma não fosse do esquadrão anti-bomba, já teria me fodido nessa de mergulhar cegamente na conversa alheia. Conversa mole, chega de mansinho, ri no pé do ouvido, fala besteiras que podem te enlouquecer. Olha nos seus olhos e parece que te desnuda toda, vê até o que tem por de trás da alma, dá calafrio. Isso passa quando eu lembro das minhas paixões, do mundo de possibilidades que eu devo abrir mão se escolher uma vida só para amar e viver. É muito fácil eu me perder da vista desse rapaz, e é quase com a mesma facilidade que posso me perder naqueles dentes.
Vive dizendo que me quer como peça exclusiva no seu quarto, mas eu sei da coleção que ele tem por lá. Não quero fazer parte, são obras de arte lindas e que marcam muito sua história, mas são memórias de algum tempo bonito que viveu. Das suas linhas parece que sempre falta fôlego. Não é pela falta de vírgulas, pontos ou parágrafos, é por sua ânsia. Jorra detalhes para todos os cantos e não há palavras o suficiente nesse mundo para que ele as coloque no papel. Tenho pena de quem se torna sua musa e um medo imenso de parar na ponta de sua caneta. O problema é que parte do medo é também desejo, vontade do proibido, do que não se pode aguentar. Graças aos deuses eu aprendi a controlar isso a ponto de não deixar ser maior que eu. Seu pessimismo é que me mata, é o que dá mais vontade de juntar os cacos e fazer dele inteiro novamente, mostrar que dá pra ser amor dividindo uma lata de leite condensado. Me mata ver ele se jogando em um mar de sombras retorcidas, dá vontade de mergulhar e salvá-lo desse inimigo que desconheço, mesmo sem saber nadar. É tolo. Por isso mesmo tapo meus ouvidos para não ouvir as ondas engoli-lo, caminho na direção oposta, vejo o sol onde só tem chuva. É imbecil também.
Ele é capaz de despoluir meus ouvidos, desembaçar meu mundo e desenterrar toda a minha insanidade. Essa minha insensatez de querer beijar o perigo ainda me tira a vida. Logo ele que é tão tóxico, tão impuro e impróprio. Chegou como o frio da cidade, sem pedir licença para ficar beirando a minha casa. Se eu abro a porta, essa tormenta vem e bagunça tudo o que que eu demorei séculos para organizar. Destrói tudo. Não deixo e pronto. Então eu peço pra ir embora com o coração implorando para ficar. Eu o sufoco no grito que solto no travesseiro, mato e desmembro-o todo alegando que eu o adoro, que eu o quis de um jeito que não pude tê-lo e me culpo e me arranho por nunca ter lidado com esse inferno antes. Era O Morro sendo recontado e não sabíamos direito que papel interpretar. O infeliz deveria ser preso por 171, estelionato emocional, tá lá na lei "obter, para si ou para outro, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento". O que eu sentia era camicaze, ia de encontro ao que me matava tentando conseguir qualquer tipo de glória nessa bobagem. De novo, imbecil.
Era muito fácil olhar para ele e querer explodir. Nunca entendi como eu podia odiar tanto o fato de adorar tudo o que detesto nele. Não faz sentido algum. Eu tentei racionalizá-lo, enquadrá-lo em qualquer canto de merda na minha vida e não consegui. Ele foge a toda tentativa de fazer sentido. Eu namoro sua loucura  e não sei lidar com ela. Procuro em seu discurso toda forma geométrica que se encaixa na minha, mas me fascino com os polígonos irregulares que não fazem par com meus triângulos isósceles. Minha preguiça dele vivia de mãos dadas com as minhas meninices, imagine só o susto que levei quando me vi fazendo as unhas dos pés pensando que poderia encontrá-lo em qualquer esquina.
Foi assim que parei aqui, tentando superar o vício de falar e pensar sobre ele o tempo todo. Passa, pra variar é passageiro. Então deixa eu desabar aqui todas as incoerências de querê-lo. Preciso registrar isso antes que seja tarde demais e eu perca esse momento único de inspiração que, apesar de ser momento, dura há alguns dias já. Respiro em paz enquanto coloco os últimos pingos nos Is desse texto cansativo. Metade disso já foi, agora só falta mais um pouquinho.

Najla Brandão

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Apelo aos desbravadores de corações

   Eu não sou o que você procura.
   Eu sou um acidente de percurso numa quinta-feira embriagada onde aconteceu-me de me fazer acontecer pra você. Sou um desalinho que levanto de mansinho pra não te acordar. Não fico pro café. Não faço cafuné. Isso é parte de uma história que não foi contada e que ninguém vai comentar. Um segredinho entre nós. De novo.
   Eu sou o que você precisa, mas não o que você procura. Não vou te causar anseios, mas posso aliviar sua culpa por não amar mais quem tanto te levou aos paraísos da Terra. Posso te dar uma, duas, três horas de distração, mas não fico pra vida toda. Mesmo sabendo que eu poderia. Eu me encaixo em qualquer lugar. Eu caibo em qualquer canto. Eu sou um prêt-a-porter, mas não sou feita à medida, costurada à mão com cuidado. Eu sou um genérico barato da sua melhor experiência na vida.
   Admito minha culpa, eu não mostro o melhor de mim. Eu mostro uma maçaroca generalizada de mim mesma. Um pedaço vulgar. Isso não é apelativo e nem é a intenção ser. Eu não causo mistério, não te convido pra entrar e conhecer tudo que sou. Eu sequer faço jogo de sedução ou coisa do tipo. Simplesmente me deixo levar por situações divertidas. E na manhã vou embora ou te levo na porta e é isso. Eu sou uma experiência barata.
   Repito: eu poderia ser muito mais, eu poderia dar muito mais. Recuo. Fecho as portas. Passo os trincos. Pra lá do meu pescoço e das linhas grossas do meu corpo é zona de conflito, requer mais que vontade. Para aventurar em terras pouco exploradas é preciso muito mais do que seus apelos de beijos e delícias. Uma sinergia surreal.
   É aí que fujo. Não bate a onda. Não dá grau. Eu fui mais uma, você foi mais um. Poderia ser mais. E o interesse em bandeirar por essas matas quase virgens?

Desbravadores,
decifra-me
ou eu não
te devoro.

Najla Brandão