terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Amigo Chato




        Trombou em mim como quem não quer nada. Tava logo querendo que eu perguntasse como ele tava, sei disso porque ele perguntou primeiro.
        _E cê tá boa?
        _Na medida do possível, remendando meu coração e tentando fazer algo de útil, além de comer tomates. -respondi no auge do meu lirismo e frustraçõezinhas de fim de ano.
        _Tenta batata baroa. Cozinha rápido e fica delícia com tomate, nem precisa de tempero.
        Ri daquela bobagem e achei lindo. Tomate e batata. Pode ser que eu goste e talvez a falta de tempero me ajude a diminuir o excesso de sal que tenho ingerido nas últimas semanas. Ele me achou no bar bebendo cerveja barata. Só perguntei da vida dele depois que sentamos um do lado do outro, despejamos a cerveja nos copos e encaramos o dono do boteco como se fosse mais que óbvio que tratávamos de assuntos restritos ao departamento emocional e não ao culinário.
        _E você? Como tá?
        _Apaixonado.
        Ri de novo. Parece que o mundo todo resolveu se apaixonar por agora. Pode ter alguma coisa a ver com não querer passar a virada do ano sozinho ou querer ganhar presentes de Natal, pode ser que as pessoas abram mais seus peitos vulneráveis quando chegam os feriados. Não importa, eu seguia o caminho inverso. Estava logo a frente, no ápice do desencanto, desenfreada rumo ao chão de realidade do grande abismo da superação. Depois que você amassa a cara na terra fica tudo bem. Perguntei do nome. Ele falou de como chamava ela. Era bonito.
        _Rá, boa sorte. A última que conheci com um nome desses destruiu o coração do meu irmão. -dei um gole.
        Ela veio de uma dessas colisões em que você deságua seu descontentamento com a filha da putice alheia e acidentalmente KABUM, o Hulk da paixão surge, escolhe um coleguinha aleatório da sua vida e você está fodido durante os próximos meses.
        _Fui pego desprevenido -ele lamenta.
        _Cara, ninguém se prepara  pro amor. Ele chega arrombando a porta, colocando o pé em cima da mesa da sala, abrindo a porta da geladeira e comendo sua comida.
        _Chamando sua mãe de tia, batendo na sua bunda -ele completou- e dizendo que sua irmã, prima, tia é ou já foi mais gostosa. E você só consegue olhar pra esse filho da puta, rir, pegar uma cerveja, sentar ao lado e tirar a tv do Discovery Channel.
        _Sabe porquê, rapaz? -perguntei. - Porque se você soubesse que esse viado viria, você não abriria a porta. Você sairia de casa pra dar um rolê na pracinha e deixaria por escrito na porta algo como "volte outra hora".
        _É, porque tem dia que 'cê tem paciência pra esse viadinho, mas na maioria 'cê tá ocupado demais pra dar atenção pra ele. Só que o filho da puta fala alto pra caramba e tira atenção de tudo que cê tem que fazer.
        _Ele te chama pra jogar vídeo-game quando 'cê tem aquela prova fodida pra estudar. -continuei seu raciocínio. - 'Cê fala que não, mas dez minutos depois tá lá.
        _Isso quando não te manda uns vídeos de gatinhos ou filhotes brincando com bebês pelo Whatsapp. E aí cê fica naquele papo e quando percebe já acabou o dia.
        _E você não fez nada.
        _Exatamente. Isso é  o amor. Esse amigo chato que você vagamente lembra onde conheceu, mas sabe que tá na sua vida desde que você descobriu que era gente. -ele finalizou.
        Contemplamos o vazio durante algum tempo, percebendo que o amigo é realmente aquele amigo chato. Apesar de tudo o dono do bar achou que estivéssemos olhando pra ele, o que não era verdade. O dono do bar não é o amigo chato, ele é o amigo legal que te oferece bebida quando você tá triste e te diz coisas confortantes do tipo:
        _Mais uma?
        Sim, mais uma.

Najla Brandão e João Bennett,
seria injusto dar os créditos desse diálogo incrível só para mim.
Obrigada pela poesia.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Atlântida



       Eu era uma cidade inteira perdida debaixo de toda aquela água salgada e mesmo assim 'cê insitia em navegar na superfície. Ninguém contou, mas era ali que as ondas castigavam o casco com força, era ali que os acidentes aconteciam, o vento batia na flor da água e revirava a tua canoa. Se tu caísse na água não ia mergulhar por entre prédios inteiros de concreto esquecido. Afundaria, naufragaria com todos os pedaços de madeira que constituíam seu barquinho e lá no fundo ia apodrecer sem conhecer o melhor de mim. Não digo que é preciso coragem para se enrugar com meu sal, mas é preciso paciência e vontade. Faltou de tudo um pouco. Faltou até mesmo uma crença na oferenda que lançou à beira-mar meses antes de remar rumo à areia segura. Não deu tempo das flores chegarem, da coroa fazer seu caminho até meus bancos de areia.
       O oceano leva e traz, mas eu continuo sempre no mesmo lugar. Vez ou outra uma construção rui. É silencioso. Ninguém vê, ninguém ouve. Perguntei-me durante algum tempo se o motivo do descaso fora a ausência dos meus barulhos, a leveza que poderia te trazer fazendo 'cê dançar na água ou a nova perspectiva de olhos embaçados. Aceitei que o que é do meu mar o teu mundo não toca. Não é medo de molhar, é desinteresse pelo banho de sal.
       A parte boa é que refinei todo esse sal e fiz algo de útil. Hoje eu como tomates. Com bastante sal e um copo de água do lado. Aprendi a separar as coisas e aproveitá-las sozinhas. Meu acompanhamento tem sido uma porção de tempo livre que trato de ocupar com coisas. O rombo que tu deixou foi uma saudade do que a gente nunca foi. Percebi depois de algum tempo a minha própria solidão e vi que não é diferente da sua. Nós nascemos pelados e sozinhos, morreremos vestindo roupas e sozinhos. É patético pensar que durante todo esse tempo o que tentamos levar para debaixo da terra são roupas. É ridículo pensar que o que eu fiz de notório em minha vida foi começar a comer tomates. Mas é isso, sabe? Todas as brigas, translações, revoluções e debates que ocorreram dentro de mim mudaram milhares de coisas e eu não noticiei nenhuma por aí. Exceto o sal. Exceto o tomate.
       Dá pra ver o porquê d'eu gostar de tudo assim. Eu tenho sede porque me enxugo com sal, eu durmo com o ventilador no máximo e uma coberta por cima, eu tomo sol pra ter o prazer de ver minha pele se alvejar com o tempo, eu quero o doce pra contrabalancear meus excessos iodados. Eu faço o meu meio trazendo os dois extremos para a mediana, não me afastando das bordas. Eu quero o preto e o branco, o oito e o oitenta sempre no mesmo copo. De preferência sem enxaguar e enxugar. Eu vou fumar um maço inteiro em um dia só pra passar três meses sem colocar um maldito cigarro na boca. 'Cê parecia entender tudo isso. E agora sobrou isso: uma cidade imersa, uma pilha de sal e a vontade de comer tomates no almoço. Não é que eu ainda saí no lucro?

Najla Brandão