terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Amigo Chato




        Trombou em mim como quem não quer nada. Tava logo querendo que eu perguntasse como ele tava, sei disso porque ele perguntou primeiro.
        _E cê tá boa?
        _Na medida do possível, remendando meu coração e tentando fazer algo de útil, além de comer tomates. -respondi no auge do meu lirismo e frustraçõezinhas de fim de ano.
        _Tenta batata baroa. Cozinha rápido e fica delícia com tomate, nem precisa de tempero.
        Ri daquela bobagem e achei lindo. Tomate e batata. Pode ser que eu goste e talvez a falta de tempero me ajude a diminuir o excesso de sal que tenho ingerido nas últimas semanas. Ele me achou no bar bebendo cerveja barata. Só perguntei da vida dele depois que sentamos um do lado do outro, despejamos a cerveja nos copos e encaramos o dono do boteco como se fosse mais que óbvio que tratávamos de assuntos restritos ao departamento emocional e não ao culinário.
        _E você? Como tá?
        _Apaixonado.
        Ri de novo. Parece que o mundo todo resolveu se apaixonar por agora. Pode ter alguma coisa a ver com não querer passar a virada do ano sozinho ou querer ganhar presentes de Natal, pode ser que as pessoas abram mais seus peitos vulneráveis quando chegam os feriados. Não importa, eu seguia o caminho inverso. Estava logo a frente, no ápice do desencanto, desenfreada rumo ao chão de realidade do grande abismo da superação. Depois que você amassa a cara na terra fica tudo bem. Perguntei do nome. Ele falou de como chamava ela. Era bonito.
        _Rá, boa sorte. A última que conheci com um nome desses destruiu o coração do meu irmão. -dei um gole.
        Ela veio de uma dessas colisões em que você deságua seu descontentamento com a filha da putice alheia e acidentalmente KABUM, o Hulk da paixão surge, escolhe um coleguinha aleatório da sua vida e você está fodido durante os próximos meses.
        _Fui pego desprevenido -ele lamenta.
        _Cara, ninguém se prepara  pro amor. Ele chega arrombando a porta, colocando o pé em cima da mesa da sala, abrindo a porta da geladeira e comendo sua comida.
        _Chamando sua mãe de tia, batendo na sua bunda -ele completou- e dizendo que sua irmã, prima, tia é ou já foi mais gostosa. E você só consegue olhar pra esse filho da puta, rir, pegar uma cerveja, sentar ao lado e tirar a tv do Discovery Channel.
        _Sabe porquê, rapaz? -perguntei. - Porque se você soubesse que esse viado viria, você não abriria a porta. Você sairia de casa pra dar um rolê na pracinha e deixaria por escrito na porta algo como "volte outra hora".
        _É, porque tem dia que 'cê tem paciência pra esse viadinho, mas na maioria 'cê tá ocupado demais pra dar atenção pra ele. Só que o filho da puta fala alto pra caramba e tira atenção de tudo que cê tem que fazer.
        _Ele te chama pra jogar vídeo-game quando 'cê tem aquela prova fodida pra estudar. -continuei seu raciocínio. - 'Cê fala que não, mas dez minutos depois tá lá.
        _Isso quando não te manda uns vídeos de gatinhos ou filhotes brincando com bebês pelo Whatsapp. E aí cê fica naquele papo e quando percebe já acabou o dia.
        _E você não fez nada.
        _Exatamente. Isso é  o amor. Esse amigo chato que você vagamente lembra onde conheceu, mas sabe que tá na sua vida desde que você descobriu que era gente. -ele finalizou.
        Contemplamos o vazio durante algum tempo, percebendo que o amigo é realmente aquele amigo chato. Apesar de tudo o dono do bar achou que estivéssemos olhando pra ele, o que não era verdade. O dono do bar não é o amigo chato, ele é o amigo legal que te oferece bebida quando você tá triste e te diz coisas confortantes do tipo:
        _Mais uma?
        Sim, mais uma.

Najla Brandão e João Bennett,
seria injusto dar os créditos desse diálogo incrível só para mim.
Obrigada pela poesia.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Atlântida



       Eu era uma cidade inteira perdida debaixo de toda aquela água salgada e mesmo assim 'cê insitia em navegar na superfície. Ninguém contou, mas era ali que as ondas castigavam o casco com força, era ali que os acidentes aconteciam, o vento batia na flor da água e revirava a tua canoa. Se tu caísse na água não ia mergulhar por entre prédios inteiros de concreto esquecido. Afundaria, naufragaria com todos os pedaços de madeira que constituíam seu barquinho e lá no fundo ia apodrecer sem conhecer o melhor de mim. Não digo que é preciso coragem para se enrugar com meu sal, mas é preciso paciência e vontade. Faltou de tudo um pouco. Faltou até mesmo uma crença na oferenda que lançou à beira-mar meses antes de remar rumo à areia segura. Não deu tempo das flores chegarem, da coroa fazer seu caminho até meus bancos de areia.
       O oceano leva e traz, mas eu continuo sempre no mesmo lugar. Vez ou outra uma construção rui. É silencioso. Ninguém vê, ninguém ouve. Perguntei-me durante algum tempo se o motivo do descaso fora a ausência dos meus barulhos, a leveza que poderia te trazer fazendo 'cê dançar na água ou a nova perspectiva de olhos embaçados. Aceitei que o que é do meu mar o teu mundo não toca. Não é medo de molhar, é desinteresse pelo banho de sal.
       A parte boa é que refinei todo esse sal e fiz algo de útil. Hoje eu como tomates. Com bastante sal e um copo de água do lado. Aprendi a separar as coisas e aproveitá-las sozinhas. Meu acompanhamento tem sido uma porção de tempo livre que trato de ocupar com coisas. O rombo que tu deixou foi uma saudade do que a gente nunca foi. Percebi depois de algum tempo a minha própria solidão e vi que não é diferente da sua. Nós nascemos pelados e sozinhos, morreremos vestindo roupas e sozinhos. É patético pensar que durante todo esse tempo o que tentamos levar para debaixo da terra são roupas. É ridículo pensar que o que eu fiz de notório em minha vida foi começar a comer tomates. Mas é isso, sabe? Todas as brigas, translações, revoluções e debates que ocorreram dentro de mim mudaram milhares de coisas e eu não noticiei nenhuma por aí. Exceto o sal. Exceto o tomate.
       Dá pra ver o porquê d'eu gostar de tudo assim. Eu tenho sede porque me enxugo com sal, eu durmo com o ventilador no máximo e uma coberta por cima, eu tomo sol pra ter o prazer de ver minha pele se alvejar com o tempo, eu quero o doce pra contrabalancear meus excessos iodados. Eu faço o meu meio trazendo os dois extremos para a mediana, não me afastando das bordas. Eu quero o preto e o branco, o oito e o oitenta sempre no mesmo copo. De preferência sem enxaguar e enxugar. Eu vou fumar um maço inteiro em um dia só pra passar três meses sem colocar um maldito cigarro na boca. 'Cê parecia entender tudo isso. E agora sobrou isso: uma cidade imersa, uma pilha de sal e a vontade de comer tomates no almoço. Não é que eu ainda saí no lucro?

Najla Brandão

domingo, 23 de novembro de 2014



          Ele era atleticano doente. Lógico. Tinha que ser. A minha antipatia pelo Atlético terminava ali, na hora que minha calcinha encharcava só de lembrar das caras e bocas que ele fazia quando acertavam o gol. Puta que pariu. Trave. Final do segundo tempo e eu não sei mais se nasci cruzeirense ou se meu coração é preto e branco. Pra quê eu to torcendo mesmo? Independente do resultado eu saio ganhando. Se o Galo perde eu viro consolo e se ele ganha eu vou poder ver aquele sorrisão aberto pra mim. Sem contar que ele vai ficar completamente bêbado e dá pra abusar um pouquinho, quem sabe eu descolo até uma declaração e um carinho. Juiz apita. Empate. É, essa eu não previa.
          _Bora, meu bem? -eu chamo.
          _Bora.
          Ele tá meio emburrado. Provavelmente vai insistir nas cervejas quando chegarmos em casa. Acho engraçadinho o jeito que o nariz dele franze um pouquinho quando tá meio brabo, é praticamente imperceptível, eu mesma só fui notar essa semana. Não entendia qual era o motivo pra eu gostar tanto da cara de zangado, tá ali ó, três ruguinhas de nada no nariz. Nariz de personalidade forte. Eu chamo assim todo e qualquer nariz que seja grande ou engraçado. O dele era engraçado e eu sou louca por esse nariz. Abriu a porta do meu apê e foi logo se jogando no sofá, tirando a bota, abrindo uma long neck, colocando aquelas MPBs que eu detesto pra tocar. Sento do lado e de repente to cantando Chico com ele. Eu na cozinha passando um café e ele na sala curtindo a tontura. Como é que pode?
          _Não sei se eu corto o cabelo. -ele comenta de lá.
          _Deveria. Fica mais bonito curto.
          _Vou deixar assim.
          Ojeriza, viu? Ele não faz por querer. Assim como ser atleticano, irritar a minha natureza é completamente involuntário da parte dele. Afinal de contas, eu que escolhi essa delícia que era passar meu tempo com ele. Ele aperta a pasta de dente no meio? Aperta. Ele implica com meu gosto musical? Implica. Pelo menos não come a coxinha pela bunda, né? Olha que amor.
          _Vem cá. -ele pede.
          Eu vou, sento no colo e passo os dedos pelos fios lisinhos que parecem fazer carinho na minha mão. Tudo nele é assim. Carinho. Ele encosta a cabeça no meu peito e fica imerso no próprio universo. Eu observo, tentando desvendar seus detalhes. Cansei de perguntar qual era a das tatuagens, ele nunca respondia. Respondia qual era a da barba. Todo dia era uma diferente. A de segunda:
          _Barba é coisa de gente poderosa.
          A de terça:
          _Assim é mais fácil, tô com preguiça.
          A de hoje:
          _Tô treinando pra ser mendigo.
          _Ta chegando lá, cuidado.
          A gente ri, a gente dança daquele jeito desengonçado. Um charme só. Os braços soltos demais e as pernas enroscando umas nas outras em uma porrada de movimentos aleatórios. Sem padrão nenhum mesmo. Levo ele pro banho, to vendo esse rapaz desmaiar de sono na minha frente. Quase não dá pra acreditar que hoje ele vai ter uma noite tranquila. Os dias inquietos dele quase me matam. Madrugadas viradas e noites trocadas pelos dias. Ele foi pro chuveiro e eu fui colocar meu pijama pra dormir. Apareceu no quarto cambaleando, esfregando os olhos, sacudindo o cabelo molhado. Deitou pelado mesmo ficou de conchinha comigo. Beijou a minha nuca e balbuciou alguma coisa.
          _Eu gosto de você pra caralho, mulé.
          Eu acreditei, né. Palavra de atleticano, coisa de torcedor, mania de quem acredita. Nessas horas eu mudo até de time.
         

Najla Brandão

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Bobagem




não me preocupa 
amanhã ter só o almoço
para encher a barriga

o que me ocupa
é pensar no moço
e ter nos dedos figas
para não entortar as vigas
que sustentam esse esboço
de romance sem culpa

com que cara
eu conto pro meu bem
que não vai ter abraço?
como que eu falo
que dos afetos guardados
só sobrou um chumaço?

faltou café,
faltou cigarro,
faltou final clichê.
sobrou saudade,
sobrou tristeza,
e sobrou você.

assim, bem só.
você daí,
eu daqui
e na garganta um nó.

Najla Brandão

domingo, 9 de novembro de 2014

Pinga



aguardente
pinga em mim
se quem sofre é a gente

aguardente, por favor
num copo cheinho
pra esse dia sem cor

aguardente
é bebida de quem
aguarda gente

e Ypióca
é bebida de quem gosta
de rima óbvia

aguardar 
o que se tem
à guardar

aguardente, por favor.

Najla Brandão

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Doente da rima, do coração e do pé



eu queria ser cura,
mas sou placebo
a solução poderia ser as minhas juras,
mas eu não juro, eu bebo

toma-se doses cavalares de mim,
mas não sara,
a dor não para,
só vira um comichão sem fim

eu podia ser o SUS,
com rimas tão pobrezinhas assim,
eu até faço jus
à essa fama de que faz
ou de que trata,
no fundo é a espera quem te mata
com dedos de quem traz paz.

R.I.P.

Najla Brandão

domingo, 19 de outubro de 2014

Escrivinhista


melhor que escritor e poeta,
é ser escrivinhista
que não sabe se escrivinha
ou escrivaninha.


Najla Brandão 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

coração vendido



saí contigo e fiquei tão feliz,
mas tão feliz,
que saí de novo

saí de novo e fiquei tão feliz,
mas tão feliz,
que quis sair com outros

saí com outro e voltei tão feliz,
mas tão feliz,
que quis beijar você de novo

Najla Brandão

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Marina



         Perdi todo o interesse que eu tinha na vida depois que encontrei com essa menina na fila do caixa da padaria. Não me dei conta disso instantaneamente. Ela carregava um monte de sacolas como se tivesse comprado metade do estabelecimento e eu me ofereci pra ajudar. Ela recusou de primeira, mas aceitou dizer seu nome.
         _Marina. Pode me chamar de Nina. E o seu? - perguntou deixando as sacolas no chão e estendendo a mão direita para me cumprimentar.
         _Otávio. -retribuí o aperto de mãos e me aproveitei da situação para pegar algumas sacolas, ela não protestou e me guiou pelo caminho até sua casa, que ficava a dois quarteirões da minha, na mesma rua.
         Começou assim, sem promessas e sem expectativas, não demorou muito tempo para eu começar a frequentar a padaria todos os dias com a intenção de revê-la. Passava na porta da casa dela, pegava o caminho mais longo só para ter essa chance, já era uma obsessão.
         _Otávio!
         Marina. Ela quem me encontrou perdido feito um andarilho vagueando as ruas da cidade. Estávamos quase na porta da sua casa de novo quando eu a chamei para tomar um café. Conversamos a tarde toda e eu me vi fascinado pelos seus detalhes. Quando vi já eram quase seis e tive que ir embora. Nina me levou até a porta.
         _Obrigado pelo café -agradeci.
         _Não foi nada. -ela sorriu e escondeu metade de si atrás da porta. Foi fechando devagarzinho e eu dei as costas para ela.
         _Ei! -chamou de volta.
         Virei pensando que poderia ter esquecido algo, mas o que encontrei foi um par de lábios acariciando os meus. Embasbacado com o beijo roubado acabei me empolgando. Avancei pela porta e voltei para o apartamento que eu tinha deixado para trás poucos minutos antes. Percebi que o que eu tinha esquecido por lá era o meu juízo.
         Enrosquei meus dedos nos seus cabelos castanhos quase mel e fiquei todo enrolado com suas mãos que tateavam todo o meu corpo em busca de me libertar das roupas. Parei no meio de um quarto, completamente tonto, agora que abria meus olhos pela primeira vez. Fiquei surpreso de ver Marina me observando divertida. Caminhou até a sacada despindo o vestido, fechou as janelas e voltou para os meus braços. Nos deitamos e ali naquele quarto eu desnudei muito mais do que a pele daquela menina, descobri não só seu corpo, mas um território inteiro do seu continente. Ela, em vez de pensar no próprio umbigo, lambia o meu perversamente. Mordia meus dedos melados e me beijava a boca com o gosto do sal que existia na minha pele. Chupava do lóbulo da orelha até a base do meu pau como se estivesse alheia ao mundo, perdida num limbo malicioso de luxúria. Nina não transava. Comungava consigo e me usava de recipiente para receber o divino em um orgasmo delirante.
         Toda suada olhava para mim com aqueles olhos de ébano pesado, que resistiam à toda e qualquer tentativa minha de penetrá-los. Sentia que ia morrer toda vez que olhava para eles. Eu poderia jurar que cada olhar seguido de um sorrriso era um jeito de me matar. Nessa noite eu contei, morri cento e oitenta e seis vezes. Cada uma diferente da outra.
         _Eu quero te devorar todo. -ela dizia apertando os olhos de tanta vontade.
         _Já não fez isso?
         _Não, eu digo de verdade. Gosto de você. -repousou a cabeça no meu peito. - Eu poderia casar contigo.
         _Eu também. -respondi.
         Era harmônico. Casar, ter filhos, abortar e divorciar. Amar em intensidades estratosféricas parecia certo. O tempo respeitava o nosso templo, e as nossas próprias dissonâncias respeitavam o silêncio tântrico daquela cama. O universo se resumiu a um jogo de lençóis velho durante uma madrugada toda. Os prédios, as luzes, as árvores, tudo parecia estático num sinal de deferência ao que nascia ali. O cheiro dela era de roupa limpa e cigarro de filtro. Não tinha nenhum traço de perfume na sua pele, exceto por uma áreazinha no braço esquerdo que poderia ter um cheiro maravilhoso por alucinação minha ou um cuidado vaidoso dela. Conversamos, rimos bastante das nossas bobagens e de tudo o que nos complementava ou suplementava. Vi que tangenciávamos aqui e ali na vida, me deslumbrei com os nossos senos e cossenos, mas eu tinha medo. Vez ou outra, quando ela se escondia atrás de uma mecha de cabelo, eu poderia jurar que não era o certo. Ela poderia ir embora a qualquer instante. Paixão pra ela era como o café-da-manhã de quem madrugou a noite toda: uma incerteza. 'Cê nunca sabe se vai aguentar virar o dia para tomar aquela xícara de café ou se vai dormir antes de dar seis da matina pra acordar só depois das duas da tarde. Não sabe se pega as roupas e vai embora ou se fica pra ganhar cafuné e dormir nos braços de alguém.
         _Otávio, cê já amou alguém? -ela me perguntou do nada.
         Parei de acariciar seus cabelos para pensar durante um segundo na resposta.
         _Sim.
         _Você ainda ama ela?
         _Acho que não.
         _Pensa muito nela?
         _Mais do que deveria, às vezes dá saudade.
         _Lembrei de um pôster engraçadinho.
         _Ah é? Qual?
         _Um que falava assim: "Jogo conversa fora, búzios, tarô, war, truco e gato mia.  Revelo o futuro, mas só a parte boa. Tristeza, fome, dor de cotovelo e cólica, curo até saudade, só não lavo a louça."
         _E cê faz tudo isso?
         _Faço até mais.
         _Tipo o quê?
         _Estrago seu amor pela ex em três dias.
         Eu ri daquela verdade absurda.
         _ E você? Já amou alguém?
         _Não sei. Eu me apaixono com certa facilidade, mas acho que nunca amei verdadeiramente alguém. Creio que não sei fazer isso direito, sabe? Amar apaixonadamente.
         _Porque?
         _Não sei lidar com isso de espaço emocional alheio. Tenho vontade de me envolver com tudo o que o outro faz, mas não posso. Aí eu acabo perdendo o interesse. Isso se eu não me machucar tentando ajudar alguém nessa brincadeira de me importar demais.
         Ela queria ser amor, mas ninguém tinha ensinado pra ela como é que se amava. Isso explica os tropeços que seu coraçãozinho dava. Como podia caber tanta poesia dentro de uma garota?
         _E olha, -ela continuou- acho muito instável isso de estar em um relacionamento. Como podem duas pessoas conviverem bem com o fato de que podem ser largadas a qualquer instante? Relacionamento é isso no fim das contas, o povo finge que não, mas é. É escolher todo dia estar com alguém, como é que se sujeitam a serem escolhidos e escolherem todo os dias?
         _É um ponto válido.
         Nina queria algo que não fosse sublimar ou escorrer, que colocaria nas palmas das mãos e teria certeza de que não volatizaria e tampouco escaparia pelos buracos dos dedos. Fluiria em cima da pele fina e faria cócegas quando começasse a ultrapassar os limites das mãos e avançassem pelos pulsos. Eu não diria impossível de se obter, mas certamente era algo muito difícil. Eu queria contar pra ela que eu poderia oferecê-la tudo o que ela quisesse, eu seria amor junto dela, transpiraria suas bonitezas por aí. Mas como é que você diz para uma menina tão linda umas mentiras tão descabidas? Em vez disso, olhei nos olhos dela e joguei a única certeza que eu tinha.
         _Você é linda demais, que isso!
         Ela riu, não acreditava no que eu dizia. Segurou as minhas mãos debaixo das cobertas, beijou a minha testa e fechou os olhos. Desfiz meu corpo nesse ato que, por outros olhos, desmoralizava a minha masculinidade. Foi quando eu percebi que algo crescia dentro de mim. Ela dormiu e eu tentei fazer o mesmo, mas não consegui. Eu queria levar Marina para casa, cuidar dela com o esmero que guardei em mim por toda a vida. Ainda que eu sentisse que fosse errado querer levá-la embora. Depois disso, o sono me atacou. Dormi por algumas horas, não muito porque acordei com ela levantando da cama e com o quarto escuro.
         _Tenho que ir trabalhar. Se quiser pode ficar, tem café na cozinha. É só trancar a porta e deixar a chave debaixo do vaso de plantas da porta, tá bom?
         Fiz que sim com a cabeça e esfreguei os olhos.
         _Eu quero sair contigo de novo, rapaz.
         _Eu também.
         Mas a coisa morreu aí. Ela veio ao meu encontro e me beijou. Um beijo apressado, despretensioso, vazio de promessas. Ela nunca disse quando. Poderia ser amanhã, daqui uma semana ou um ano, quando ela voltasse daquela viagem longa pro exterior. O de novo é uma incógnita que a gente insiste em achar que é certeza. Olhou uma última vez para mim e fechou a porta do quarto. Quase de imediato comecei a me mexer, juntar as roupas caídas pelo chão como alguém que procura as peças de um quebra-cabeça para encaixar. Fiquei com Marina na cabeça.
         Passei o dia todo pensando numa maneira de encontrá-la despretensiosamente de novo. Dividi a mesma cama com Nina e ainda parecia que não tinha saído do zero. Não tinha a coragem de aparecer e chamá-la, eu mesmo não queria invadir seu espaço sem ser convidado. Eu soube que era real quando quis deixá-la livre. Pela primeira vez não quis tomá-la para mim, só rezei para que ela viesse de boa vontade. Talvez amar fosse isso, pedir todas as manhãs para que o outro te escolhesse mais uma vez, mas não ficar de todo triste quando não aparecesse. Continuei a ir na padaria todos os dias, ela nunca mais apareceu. Mudei de padaria e lá estava ela. Seus cigarros tinham acabado, disse ela na fila do caixa, mas no fundo eu sabia a verdade. Era medo purinho de numa dessas acabar se apaixonando por alguém. Fui embora meio triste.
         Não chamei Marina para sair.

Najla Brandão

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

João,



pensei que a gente ia parar de se escrever. 'Cê anda mudo, com cara de quem foi atropelado por um trem emocional carregado de mármore bruto. Engraçado como a vida tem dessas coisas, ontem era você que vinha me socorrer e hoje eu te desafogo dos seus desesperos. A gente tem tudo para se salvar, eu te jogo o bote e você me lança a corda. Eu subo e você rema. Mesmo assim, eu nunca te toquei. A distância, que cobre esse mar de montanhas e nos afasta de um encontro lindo, um dia ainda me leva pra conhecer o seu estado. Até lá resta-me a força de vontade para descobrir o que fazer com tanta coisa bonita e serena dentro de mim.
       O mês passou e eu dei cria por demais. Criei ninhos de textos, vontades borbulhantes e desejos voluptuosos, quis ter mais gente do que cabia em mim, só pra variar. Sofri uma vez de um pânico horroroso e duas ou mais com meus humores instáveis. Não tinha você pra me acalentar, dizer quaisquer palavras que acalmassem meus ânimos. Não teve ninguém, pra falar a verdade. Solitude é algo que reverbera por aqui com uma intensidade absurda e, pela primeira vez em muito tempo, eu a sinto bater seus punhos firmes na minha carne amaciada pelas estradinhas da vida. Não encare isso como uma reclamação, é só algo que notei.
       Escrevo para te contar das coisas que preciso que saiba. Se eu escrevo você pode cobrar de mim e assim eu não esqueço como ser eu mesma nesses dias quentes demais. O bafo do vento sopra e eu te falo: to com saudades da gente. Podia jurar que te vi no rosto moreno de um desses meninos da cidade. Não era você, é claro. A intangibilidade entre nós é o que sustenta o nosso romance não consumado, essa parceria que sempre funcionou por não coexistirmos no mesmo ambiente. 'Cê é cachorro-do-mato e eu cadela de apartamento, não há A Dama e o Vagabundo nesse mundo que una duas variantes tão parecidas. Mas não deixo de me perguntar: e se eu te encontro numa esquina vazia, assim sem querer, e acabo te reconhecendo? O que acontece quando a minha mão for de encontro à sua?
       Deixando de lado os questionamentos, eu preciso de mais notícias suas. Aqui dentro do peito eu sinto que tem algo de errado contigo, mas você não fala. Guarda suas desgraças e aflições e não compartilha, se emudece na tentativa de não gritar pro mundo o que a sua alma encoleriza. Canto um mantra, faço uma prece, abro um biscoito da sorte na pretensão de pedir uma benção ou a sua proteção. Aguardo um minutinho e chove. Pode ser um sinal de graça concedida.

Um abraço apertado de quem te quer bem,

       Najla Brandão

sábado, 27 de setembro de 2014

Pânico



me coço
me arranho
me rasgo e
ofego
ofego
ofego
me desespero
sinto asco
nojo
desejo de não estar dentro dessa carcaça
sou capaz de nada num mundo que é capaz de tudo
choro
copiosamente
sem estar triste
me enjoo
o movimento do meu diafragma me dá náuseas
quero vomitar
o que tem no estômago
o que tem na cabeça
preciso destruir alguma coisa
explodir
nessa enxaqueca incorpórea
essa ressaca de humor
que me mata
mata
judia
um medo imenso de mim
perigo que vem de dentro
preciso gritar e não posso
me expressar
e não sei como
queria quebrar tudo que me cerca
me machucar
apertar até doer
e se doer
sangrar
para ver se para
se minha cabeça para de rodar
e o meu peito arder
com tanta fúria
morder
cerrar os dentes com toda a força
eu
não
caibo
dentro
de mim

Najla Brandão

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Dharma Bums






barbas
cheias e falhadas
peles brancas, mulatas
e tatuadas
sorrisos fáceis e difíceis
olhos que parecem mísseis

ainda me arrebento
nos lençóis de um desses boêmios
vagabundos e gênios
de mulheres sem discernimento

menino e homem viril
de doces e Rivotril
álcool e mulheril
que tem medo e desejo da morte

jovens decentes
de corações contundentes
perfeitos dentes
que vivem brincando com a sorte

se eu me perco na tinta dos braços
que carregam os versos do Velho Buk
ou nos beijos e amassos
de rapazes de truque
termino a noite e meço
não sei se caso ou se morro,
na dúvida eu peço:
socorro!

Najla Brandão

quinta-feira, 25 de setembro de 2014



         Parece que o tempo esquenta um pouquinho e o meu coração já espicha as asas pra ganhar o mundo. Não aguenta ver um detalhezinho que já se derrete todo o coitado. Aconteceu duas vezes essa semana. Até parece que o pobrezinho sabe mesmo equilibrar mais de um menino-homem em cima de pires e cabos de vassouras. 
          Ele teria esquecido o isqueiro dia desses em cima da minha escrivaninha, seria mais uma pra coleção de desculpas que tenho guardadas para quando dá vontade de encontrar com ele. Tudo é motivo para tentar lembrar que cheiro ele tem ou descobrir seu gosto. Nessa neura de querer ir embora eu acabo ficando, só pra ver se ele vem. Bobagem minha querer juntar tudo em palavras, como se ser coerente em meia dúzia de parágrafos fosse me impedir de balbuciar um monte baboseiras quando eu colocasse meus olhos nos dele.
          Fumei meu último cigarro com um amigo enquanto vagueávamos pelos becos da cidade. O cigarro era meu, o amigo era meu, mas eu ainda sentia que traía algo dentro de mim. Parece que agora eu não posso fumar quando alguém deixa de esquecer um isqueiro no meu quarto. Ele não vem. Já passou das seis e ele não chegou, já passou uma semana que ele não assume que me quer, um mês e ainda não deu sinal de que vai aparecer. Se ele vem, eu tenho medo de que ele vá embora e se ele ficar tenho medo de que eu queira ir. É tanta bobagem, gente. Porque não deixamos isso pra lá? A gente pode se aninhar aqui nessa cama minúscula, beber daquele vinho de dez reais que eu adoro, contar piada ruim até o amanhecer. A gente pode fingir que é pra sempre.
          Fico aqui olhando para essas unhas que não desenharam no corpo dele, para os meus pés que não tiveram o abrigo quente de suas pernas e pro meu coração, que derrubei sem querer enquanto tentava me esquivar de mim mesma. Todos com um ar meio melancólico. To rezando para isso passar logo porque não vou saber me acostumar com essa possessividade e ciúmes injustificados meus. É porque eu não tenho e porque pode ir embora a qualquer instante, daí vem o medo de perder o que não se tem. Eu não nasci com essa força de vontade toda para ir atrás, tampouco fui dessas que larga com facilidade. Fico rodeando, beirando, esperando a chance de me instalar na vida dele. Chance que pode nunca chegar, oportunidade que eu nunca vou ver por estar cega com esses dentes, esse cabelo, esses olhos, esse nariz. Tudo que meu tato quer e não alcança, e se alcança não leva pra casa e se leva pra casa, faz o quê depois?
          Eu também não sei abraçar tudo o que mora dentro dele. Olho de soslaio suas inquietudes e pareço criança que quer brincar com um violão, mas só consegue tocar nas cordas, fazer um barulho desafinado e sair correndo com medo de ser pega. Nessa brincadeira eu espero pelo seu convite. Até lá vou tentando dar passos pequenos para não chegar antes de ninguém, já estou muito adiantada. Vou tentar encontrar com ele no meio do caminho, vai que cola, né? Se não der certo eu volto à pé sozinha, tem uma primeira vez pra tudo. Tô aqui com os olhos pregados nele, acompanhando cada movimento. Percebi que meu coração resmunga a cada pancada que o dele leva. Aparentemente to sofrendo pra três. E eu me pergunto se ele já está dormindo, agora que passou de uma da manhã. Será que alguma coisa aconteceu para ele ter ficado tão caladinho esses dias? Preocupo de longe e sei que não sou a única. É meu jeitinho torto de dar carinho quando não sei demonstrá-lo da maneira certa. Mas ele não vem.
          Até lá eu espero essa minha gripe passar. Se bate um vento, meus cabelos dançam e eu esqueço ele. Se o frio volta, meu coração gela; se vai embora, ele esquenta. Mas se amornar o meu leite, meu bem, chega outro com o nome mais simples e de cabeça rachada que me leva a paz. Diz que não sabe fazer malabarismo. Pois é, nem eu.  Meu sossego não é meu, é de quem cata ele no chão e leva embora, às vezes sem nem querer de verdade. Levam por levar.

Najla Brandão

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O céu que não vemos



Quando eu era mais nova alguma coisa quebrou dentro de mim. Simplesmente parou de funcionar. O mais curioso de ter algo quebrado é que qualquer rachadura é espaço o suficiente para libertar seus demônios. Foi assim que descobri a minha caixa de pandora, uma quantidade razoável de males para arrasar com o que havia de humano em mim. Pode parecer injusto dizer isso de alguém que era assim tão jovem, mas eu acho que isso é coisa de artista. Em cada um ocorre uma revolução, uma pequena guerra e uma grande depressão ao menos três vezes ao dia. Exteriorizar isso é complicado. Juntar as palavras ou as cores e tentar fazer com que elas tenham sentido para um mundo, que não é fruto do nosso sutil autismo, é exaustivo.
  Percebo hoje que eu carregava sentimentos pesados demais para uma garota de catorze anos, com tão pouca vivência e experiência era de se esperar que eu não me desse bem. Eu vivia numa busca incessante pelo meu verdadeiro eu, superar a crise de identidade e me estabelecer como uma pessoa real de existência sincera. Queria saber quem eu era. Mal sabia eu que nessa vida o espírito não é, ele está. Desde que descobri isso eu vou "estando" e testando meus diversos egos. É uma vida decente.
Por vezes eu dei sorte e acabei encontrando gente que aprisionou de volta alguns dos meus capetinhas. Sempre valorizei muito essas pessoas, mesmo que algumas fiquem por pouco tempo. É importante saber ceder, deixar ir. Dessa forma elas voltam por que gostam e não por que devem ou se sentem obrigadas. Foi assim que ganhei e perdi pessoas espetaculares, se é que é possível perder ou ganhar alguém. Encontrei esse rapaz enquanto eu tropeçava na fila do mercado tentando alcançar uma lata de cerveja. Ele comprava cigarros. Desde então ele têm ido e vindo, aparece quando dá vontade, não tem preocupação nenhuma em parecer desapegado. Tornou-se uma parte significante da minha vida sem nem ao menos eu perceber o que estava acontecendo. Daí pra frente cada gole de café tem virado desculpa para encontrá-lo. Nunca dividi essa bobagem com ninguém, mas eu dava um suspiro de alívio para cada vez que ele vinha sem ser chamado.
Eu queria olhar pra ele e dizer com convicção que tudo o que ele quer, eu tenho de melhor. Não é assim. Não existe essa certeza. A ciência tenta desvendar tudo, passamos horas de nossas vidas sentados no divã tentando compreender a parte do universo que cabe dentro da gente e, pro pedaço que não cabe, nós construímos máquinas gigantes e dissecamos átomos. Mesmo com tudo isso ainda vivemos o Princípio da Incerteza e nunca vamos ter a precisão tão certinha de nossas coordenadas, posições e momentos. Olhamos para o céu noturno, admiramos sua infinitude sem nos darmos conta de que tamanho é o infinito. Identificamos constelações, localizamos sóis e ainda sim não temos a menor ideia do que significa ser uma estrela.
_Olha ali a constelação de Touro. É o meu signo, sabia? -perguntei.
_Onde?
_Ali. À esquerda das Três Marias fica Aldebaran: aquela estrela bem brilhante meio laranjinha. É Taurus. Vê como os chifres estão em posição de ataque?
_Você acredita nessa coisa de signo do zodíaco? -ele quase debochou.
_Acredito que as estrelas têm algo de místico que ainda não compreendemos.
Parei para contemplar a cena toda. Estávamos sentados no alto da serra, trilhamos todo o caminho até aqui só para ver o que a TV anunciou há algumas horas. Dois meteoritos iriam se colidir no nosso céu. Nada grave, mas era um evento único. Era novembro, mês que namora o verão e a noite também. Seguimos o sol até ele se pôr e agora às oito horas podíamos observar as constelações. Taurus logo abaixo de Pisces, perto de Aquarius e companhia. Não estávamos ali para isso, um dos meteoritos cortaria o céu subindo e o outro desceria a seu encontro. Um partindo da constelação de Touro e outro de Peixes.
  _ 'Cê conhece a história de Taurus?
  _Não.
  _O touro que se forma é Zeus, ele se disfarçou para seduzir Europa, dessa forma Hera não descobriria a sua traição. Da relação de Zeus e Europa nasceu Minos que governaria Creta e daria origem à lenda do Minotauro. Mas essa não é a melhor parte sobre essa constelação.
  _Ah é? O que é então?
  _São as plêiades, um setestrelo que fica no corpo do Touro. São sete estrelas que representam as sete filhas do titã Atlas. A olho nu você só consegue ver seis, o brilho da sétima foi roubado por representar Mérope que se casou com um mortal e por isso não podia mais brilhar no céu noturno.
_Quantos brilhos de quantas estrelas foram apagados por conta do amor? -perguntou melancólico.
  _Provavelmente o suficiente para a porção negra do céu ser maior que a que brilha. -suspirei -Sabia que as plêiades são constantemente relacionadas às desgraças e à vergonha? É porque são estrelas de luxúria, como se amar demais fosse pecado e um acontecimento trágico.
  _Toda a tragédia que reside no amor divide parede com um instante de felicidade.- silêncio. - Eu sou de Peixes, sabe achar essa constelação?
_ Engraçado, como você, essa constelação só aparece nitidamente de vez em quando. Entre outubro e novembro dá pra ver Pisces, é só você seguir o rumo das plêiades de Taurus à direita. Dali você cai no anel que une o cordão dos dois peixes: Afrodite e Eros, que se transformaram em peixes para fugir de Tifão. -pausa-  Os melhores amigos que tive eram piscianos. Eles vêm, mostram todo um mundo para você e vão embora, apagam as pegadas para você não seguir seus caminhos. Transformam-se com uma habilidade espantosa. É engraçado como sempre me dei bem com eles, deve ter alguma coisa a ver com o fato de que Zeus enquanto Touro atravessou todo oceano a nado com Europa nas costas para chegar à Creta. Taurinos estão sempre nadando nos mares dos piscianos.
  _Parece que você passa boa parte do seu tempo remontando mitos e superstições
_A gente tem que fingir que acredita em alguma coisa nessa vida.
Eu continuava a olhar para o seu rosto, notando duas ou três pintinhas perto do queixo e torcendo para que elas fizessem sentido. Eu ainda procurava uma lógica para o que eu sentia. Repetia dezenas de vezes o movimento de olhar para o céu e virar a cabeça para encarar seu rosto, esperando que agora eu notasse algum detalhe que passou despercebido, do mesmo jeito que abrimos a mesma gaveta trinta vezes em busca de um objeto perdido. Ou então quando vemos uma estrela cadente com o rabo do olho e depois começamos a olhar para o céu a todo instante, só pra ver se dessa vez não deixamos escapar a oportunidade de fazer um pedido. Como se o ato de procurar de novo no mesmo lugar fosse ajudar.
_No que você tá pensando? -ele me perguntou de mansinho.
  _Na quantidade de pedidos que podemos fazer quando chover estrelas cadentes.
  _E você quer pedir o quê?
_Não posso contar. Senão não vai realizar. -pisquei para ele de cumplicidade. Ele riu. -E você? No que tá pensando?
  _Na dificuldade em viver debaixo de um céu que representa tanta coisa.
_E ele representa o que para você?
_A minha impotência diante do meu próprio destino. A minha incapacidade de mudar a minha ignorância sobre a vida. O não saber lidar com o que é imutável.
  _Sei como é isso. Nos sentimos pequenos demais e não sabemos o que fazer com toda essa vontade de ser gigante.
  _É um nanismo existencial completamente frustrante.
  Pensei na possibilidade de estarmos juntos e logo descartei a hipótese. Considerar um beijo seria desejá-lo, isso implicaria em me mover e pensar em como conseguir isso. Não era o que eu queria. Eu esperava que a impetuosidade dele se juntasse à minha paciência. Nos acasos nos encontraríamos, seja para nos tornarmos irmãos ou amantes. Não importava. Pela primeira vez eu não sentia vontade de controlar o meu pequeno futuro, eu só queria uma reação positiva dele sobre mim. Torcia para que eu fosse uma das pessoas escolhidas para figurarem sua vidinha admirável. Caso eu começasse a orbitar seus anéis, acabaria por esbarrar em alguma coisa e quebraria algo que não devia, poderia resultar em uma cratera em mim ou nele.
Seríamos como os dois meteoros a colidirem no céu noturno. Lindo, intenso, breve e inevitável. Havia uma sutilidade metafórica nisso, a vida também era cheia dessas coisas. Vivíamos pelo o que era belo, sentíamos na pele a destreza do mundo e observávamos todos ignorarem debilmente a morte. Negavam o fim como se fosse óbvia demais a sua distância de nós. Enquanto o resto fingia não estar morrendo a cada minuto, nós dois nos agarrávamos a essa ideia. Esgotávamos todas as possibilidades que nos eram dadas e as oportunidades que apareciam eram exploradas até minarem seus recursos. Era morrendo que nos sentíamos vivos. E então aconteceu. Dois riscos laranjas atravessando o tecido negro estelar e se explodindo com toda a força que podiam, uma cachoeira de estrelas cadentes começou a jorrar para todos lados. Desejei de alma que algo extraordinário acontecesse dentro de mim, vi que era a única coisa que eu realmente desejava.
  _Notou como a magia do desejo para uma estrela cadente é poder escolher só um pedido? -suspirei com vontade.
  _Quando se tem a chance de pedir mais coisas você não quer. Parece que para vivermos plenamente aquele instante só precisamos de uma coisa. Talvez a vida seja sobre isso, sobre o que nos falta em um único instante e como essa necessidade muda a cada segundo que se passa, tornando todo momento muito específico. Não dá para viver o mesmo instante de novo, mesmo que se reproduza tudo de novo, suas necessidades já mudaram todas.
_Posso te falar a verdade?
_Fala.
  _A verdade é que eu poderia te dar mil razões astrológicas para a gente se encontrar no meio do caminho. Poderia falar que é esse seu jeito pisciano, cheio de tato com todo mundo que encanta, essa sua coisa de nunca se prender à alguém ou aos hábitos e as rotinas, sua instabilidade na décima casa lunar que faz de você a pessoa mais atraente do meu céu. Ou então falar que é do meu signo ser teimosa e insistir em te procurar, ainda que uma coisa ou outra indique uma projeção astral desastrosa. Mesmo que isso soe como verdade, não é bem assim. Eu te procuro numa ânsia besta de tentar te entender e te fazer caber dentro de mim, mas não como o bom pisciano que você talvez seja, e sim como a pessoa doce que tem se tornado para mim. Existe esse mistério que te cerca, essa áurea que te envolve e eu fico embriagada pelo cheiro de terra úmida que tem esses caminhos que você trilhou.
  _Não existe razão nisso. Não penso que somos regidos por estrelas, ainda que às vezes deseje isso bem no fundinho da alma, é irracional ser tão apegado ao que não se vê, não se sente e não se toca. Prefiro viver no meu próprio imaginário do que ser controlado pelo imaginário alheio. Entendo quando diz que é mais fácil encontrar desculpas fora do nosso alcance para justificar nossos atos, aprecio a honestidade, é muito fácil fiar uma teia de mentiras com meias-verdades. O meio do caminho é muito longe, apesar de ser metade, existem milhões de frações para se percorrer até chegar lá. Querer apressar isso é como tirar o bolo do forno antes da hora, vai murchar e perder toda a graça. Vamos caminhando devagarzinho, deixa essa pressa só para sentir o mundo e a vida.
Deitamos na grama para continuar observando o céu. Nos demos as mãos porque sentíamos medo da nossa pequenez. Sabíamos que poderíamos sucumbir a qualquer momento por causa de um evento astronômico imprevisível ou pelos próprios mistérios do universo. Meu coração acelerou com a hipótese de morrer sem ter vivido e mostrado tudo o que eu queria. Olhei dentro daqueles olhos negros demais e me acalmei. O fim conforta mais que o princípio. As possibilidades é que assustavam e faziam a humanidade recuar diante do próprio destino. Daquele momento em diante eu entendi que o segredo não estava em correr para os braços da morte, muito menos tentar fugir dela a todo custo, mas passear pela vida calmamente e ir de encontro ao fim como quem caminha sem pressa para visitar um velho amigo.

Najla Brandão



sexta-feira, 12 de setembro de 2014

     

      Não sei onde tu moras, ou o nome da sua mãe, apenas suponho que não tenha irmãos, e que você tenha os olhos do teu pai. Sei decifrar todos os seus tons de voz, o seu jeito aberto demais de olhar para os outros, a sua mania terrível de manter distância quando estou perto e se manter por perto quando estou longe.
       Estou acostumada já com teus descompassos, talvez por eles andarem tão sincronizados com os meus. Eu dou um passo para frente e tu um para trás, eu vou para trás e você vai pra frente. As vezes andamos de lado, é quando a imparcialidade nos pega nos fins-de-semana e noites de domingo, andamos de lado até nos encontrarmos. Não decorei teus cheiros, ou teu gosto, nem o toque da tua mão; mas eu consigo me lembrar de todas as suas expressões, e do  formato desejável do seu corpo perto do meu, mais que isso tudo, eu consigo me lembrar o quanto acho tudo isso engraçado.
       Eu queria ter vontade de lutar por nós dois, queria ter vontade de correr atrás, quebrar a cara, tentar. Mas eu não ando tendo vontade nem de lutar por mim, ando me afogando numa lagoa gigantesca de chumbo líquido. Envenena, paralisa, corrói, dói. Dói por dentro, aquele soco no estômago que eu não sei se foi causado por mim ou por você. E eu gostaria de lhe contar sobre isso, compartilhar minhas dores. Queria também ter certeza sobre o que é essa merda toda, entende? É que sei lá, cara, é um dia apaixonada e outro não, um dia te desejando na minha cama, outro dia quero consolar-te dos teus romances esvaídos, um dia atravessando o inferno para “casualmente” encontrar com você, no outro dia sem nem querer ter notícias suas.
       Cansei-me de lhe tentar, de lhe procurar; sei que nem comecei a fazer isso, mas eu preciso do tato da alma. A tua alma encostando na minha, nossos fôlegos sendo tomados por sentimentos -não um pelo outro, mas pela vida. Diga-me que o que tu passas é o que eu passo. Estou a tentar-lhe por estar tão louca e obcecada para que eu goste de alguém. Estás assim também? Está querendo dar passinhos em minha direção para que talvez consigas gostar de mim? Porque se for, poderemos dar as mãos contar um para o outro histórias sobre as nossas cicatrizes. E então, mesmo que não se faça amor, faremos confiança. Teremos coisas bonitas para sentir.

Najla Brandão

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Cadê o rebuscado?


Presente e invisível
Não faço questão
Caro Prozac, anda caro o quilo de compreensão
Eu na multidão, sou tão imiscível
E ando perdendo a linha da razão
Vim trazer versos
Feitos dos meus tantos inversos
Perdidos em reversos
E em reanálises diárias
Rimar
Rir
e mar, talvez amar
Faz quantas semanas? Três?
E depois do abate?
Quem vai ficar?
Quem vem para o arremate
E os toques finais?
Trouxe amor,
Foi o que coube na mochila
Cantiga
Antiga
Antígua
Ambígua
Vais entender e me embalar?
Tomar-me em teus braços e consolar
Adular, 
Me amar?
Me ensinar a remar
Remar nos oceanos
E depois rimar
Rimar à mercê
Eu e você

Najla Brandão

sábado, 6 de setembro de 2014

Simplicidade Molhada



E lá vem outro suspiro cansado,
Outro arrepio gelado
E um trovão
Lá vem de novo
Minha tristeza vazia,
Minh’alma em agonia
E a ausência de um choro
Eu só queria voar sem ter penas,
Punições mais amenas
E não ter que fugir pra solidão
Não quero ter estrofe,
Ou que esse caderno mofe,
Nem que a chuva me molhe
Hoje não
Hoje tá escuro,
Hoje tem barulho
E eu to cantando baixinho
Pra quem precisa de carinho,
Mas tem amor no coração
Cantas, canto, voas, vôo
Pra lá e pra cá.

Fiz rimas para esquecer que hoje eu não tenho ritmo…
Najla Brandão (29/03/12)

quarta-feira, 3 de setembro de 2014


        A primavera me acordou essa semana. Às sete e meia da manhã eu abri as cortinas para observar a cor do céu, tem sido um hábito gostoso descobrir, logo quando se acorda, qual o humor do infinito. Foi uma felicidade imensurável sentir o clima fresquinho e úmido que as poucas nuvens tímidas e acinzentadas traziam na bagagem entre a brisa matutina. Agosto ainda chora alguma chuva em cima de mim. Com a chuva, vem o banho e depois de limpar o coração, a gente pode estender ele no varal para secar ao sol que aparece em seguida. Eu nunca fui tão feliz em ter um coração livre. 
       Lembra quando éramos crianças e tínhamos essa vontade imensa de agarrar os passarinhos? Gostávamos tanto do canto, das revoadas e das cores que enchiam o céu que queríamos prender passarinhos na gaiola. Hoje, enquanto observava algo que poderia ser um canarinho azul, eu vi que não ansiávamos por ter passarinhos nas mãos. Desejávamos a liberdade de cantar e ir para onde quiser, viver a simplicidade. É engraçado pensar nisso quando as coisas na sua vida encontraram um equilíbrio natural. Pelo menos é engraçado para mim que sempre sobrevivi no meio do caos e da confusão de ruídos, imagens e experiências vazias. Levantei da cama e senti que todo momento era um aprendizado válido, mesmo que o medo tome conta de mim justo quando eu mais preciso da bravura. 
        Nunca pensei que esse dia chegaria. O dia em que eu conseguiria olhar para as estrelas todas as noites sem ter vergonha do meu dia, a noite em que eu encararia o céu sem ter que pedir desculpas pela minha insolência. A comunhão de espírito que procurei por tanto tempo estabeleceu um reino de fé e paz dentro de mim. Mesmo com um coração maltrapilho, sujo e rasgado, eu poderia amar de novo. Dessa vez eu faço diferente. Deixo o egoísmo de lado e amo o mundo todo. Um coração livre tem que passarinhar um pouco.
           Cantar, voar e colorir. Afinal de contas, a primavera ta aí pra isso. 

Najla Brandão


terça-feira, 2 de setembro de 2014



       Hoje o dia pede cigarro de filtro, de preferência mentolado. Pede café, um bom livro e um abraço quentinho. Hoje o dia pede música pra dançar à dois, agarradinhos enquanto se escuta um velho blues te transportando para a década de 60. Dia de desvendar a anatomia dos corações solitários e quebrados de dois quase-amantes. É assim que se parecem as segundas com cara de sexta-feira.
        Não requer rotina, só um pouquinho de sensualidade e ousadia. Deixar escorrer o apelo sexual pelos lábios, ensopando o chão de desejo. Você quer tocar, mas não pode de uma maneira quase Buñuelesca. Existe algo de francês nesse quarto além do perfume: a meia-luz que implora para entrar pela janela, o idioma sedutor pouco dominado na cama que suplica para que não seja abandonado, a fumaça que esvoaça se desintegrando em traços abstratos.
        Essa segunda veio de carro velho direto da Carolina do Norte e vai morrer nos alpes azuis da França. Eu vou me despir de cada peça minha para conseguir a minha vidinha de segunda.  Desfaço-me de tudo que não levo na alma, danço sozinha, deixo-me levar pelo deleite de tocar a minha pele com meus próprios dedos e sinto cada pelinho dos meus braços. Tomo cuidado com os meus movimentos que devem ser suaves para não acordar a terça-feira ranzinza. Aprendo assim a tomar conta do blues.
        O quarto vazio e a madrugada fresca é quem chama para fazer da minha camisola um vestido de época coberto de rendas. Reparo nas notas tocadas e posso ouvi-las ressoarem nos meus ouvidos. É fácil me arrancar um sorriso ou as roupas com esse ritmo, mas é segunda baby blue, não existe companhia para me tirar para dançar ou cantar com a boca tão próxima das minhas orelhas geladas. Permito que meu coração cante sobre as guerras perto do meu piano imaginário, liberto três ou quatro segredos que me matavam lentamente.
        Tenho as mãos grudadas no peito ao passo que também bubuio e rodopio pelos tacos de madeira envelhecida. Canto com o sax, olho nos olhos do perigo que espera à soleira da porta para voltar: é a desesperada rotina. Peço gentilmente para que espere eu acabar essa canção de bochechas coladas com o Sr. Armstrong. Dá mesmo para acreditar que é possível ser feliz com um pouquinho de amor e algumas notas suaves.
        Despeço-me da minha anfitriã encantadora, Ella é uma mulher adorável. Sinto que ser tão doce é parte de mim, mas não me engano. Eu sempre acabo correndo para o agito, para as guitarras e os excessos de Cocaine de Clapton. Aqui é meu lugar. Satisfeita dou um último adeus a esse dia raro e fantástico em que a segunda pareceu de tudo, menos monótona.

Najla Brandão

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Ô mãe, bom dia!

   


   Acordei com uma mordida muito gostosa na bochecha, sabe? Ah, quem me dera acordar com uma dessas todas as manhãs!
   Hoje vi minha mãe chorar. Daquelas lágrimas bem grandes guardadas lá no fundo, e bem no fundo mesmo. Aquelas lágrimas que foram jogas ali na cozinha velha, junto com a tosse de outrora. Décadas sépias e acinzentadas, bem ali sentada à mesa com os irmãos. Vi algo despertar diante dos meus olhos, era aquela mágoa contida que precisava ser desaguada; também senti a compreensão me invadir. Pude entender o porquê de tantas coisas, percebi que havia herdado esse dom terrível de guardar o que não deve ser guardado. Pela primeira vez eu agradeci de verdade por ter a mãe que tenho. Por ela ser tudo o que eu preciso; por ela ser amor, reconhecimento, carinho, por ela ser dura, forte, pouco maleável. Doeu, de verdade ver seus olhos vermelhos. Tomei tanto suas dores que pude escutar claramente a tal tosse noite toda vinda do quarto. Senti um leve puxão de amor por alguém que nunca conheci, nem mesmo vi. Juro que senti tudo, pelo menos um pouco. Senti a vida dura, senti também talvez um pouco de drama, mas quem sou eu para julgar? Repreendi-me tanto, mas tanto por ser terrível; por ser tão errada, tão desleixada comigo, com os outros e com a vida, por dar tão pouco valor. E depois de tudo eu senti, bem lá no íntimo de mim, uma coisinha brotando. Era a mudança chegando. Pela primeira vez, quero ser altruísta. Fazer pelo outro (ou pela outra, no caso), não por mim. Por mim já não vale mais a pena.
   Por último, só um lembrete: mãe -ah, mãe!- eu te amo.
Najla Brandão em 2011, muita coisa mudou de lá pra cá, o amor é o mesmo, mas carinho só aumentou.

Essa sempre me faz lembrar da gente <3