Quando eu era mais nova alguma coisa quebrou dentro de mim. Simplesmente parou de funcionar. O mais curioso de ter algo quebrado é que qualquer rachadura é espaço o suficiente para libertar seus demônios. Foi assim que descobri a minha caixa de pandora, uma quantidade razoável de males para arrasar com o que havia de humano em mim. Pode parecer injusto dizer isso de alguém que era assim tão jovem, mas eu acho que isso é coisa de artista. Em cada um ocorre uma revolução, uma pequena guerra e uma grande depressão ao menos três vezes ao dia. Exteriorizar isso é complicado. Juntar as palavras ou as cores e tentar fazer com que elas tenham sentido para um mundo, que não é fruto do nosso sutil autismo, é exaustivo.
Percebo hoje que eu carregava sentimentos pesados demais para uma garota de catorze anos, com tão pouca vivência e experiência era de se esperar que eu não me desse bem. Eu vivia numa busca incessante pelo meu verdadeiro eu, superar a crise de identidade e me estabelecer como uma pessoa real de existência sincera. Queria saber quem eu era. Mal sabia eu que nessa vida o espírito não é, ele está. Desde que descobri isso eu vou "estando" e testando meus diversos egos. É uma vida decente.
Por vezes eu dei sorte e acabei encontrando gente que aprisionou de volta alguns dos meus capetinhas. Sempre valorizei muito essas pessoas, mesmo que algumas fiquem por pouco tempo. É importante saber ceder, deixar ir. Dessa forma elas voltam por que gostam e não por que devem ou se sentem obrigadas. Foi assim que ganhei e perdi pessoas espetaculares, se é que é possível perder ou ganhar alguém. Encontrei esse rapaz enquanto eu tropeçava na fila do mercado tentando alcançar uma lata de cerveja. Ele comprava cigarros. Desde então ele têm ido e vindo, aparece quando dá vontade, não tem preocupação nenhuma em parecer desapegado. Tornou-se uma parte significante da minha vida sem nem ao menos eu perceber o que estava acontecendo. Daí pra frente cada gole de café tem virado desculpa para encontrá-lo. Nunca dividi essa bobagem com ninguém, mas eu dava um suspiro de alívio para cada vez que ele vinha sem ser chamado.
Eu queria olhar pra ele e dizer com convicção que tudo o que ele quer, eu tenho de melhor. Não é assim. Não existe essa certeza. A ciência tenta desvendar tudo, passamos horas de nossas vidas sentados no divã tentando compreender a parte do universo que cabe dentro da gente e, pro pedaço que não cabe, nós construímos máquinas gigantes e dissecamos átomos. Mesmo com tudo isso ainda vivemos o Princípio da Incerteza e nunca vamos ter a precisão tão certinha de nossas coordenadas, posições e momentos. Olhamos para o céu noturno, admiramos sua infinitude sem nos darmos conta de que tamanho é o infinito. Identificamos constelações, localizamos sóis e ainda sim não temos a menor ideia do que significa ser uma estrela.
_Olha ali a constelação de Touro. É o meu signo, sabia? -perguntei.
_Onde?
_Ali. À esquerda das Três Marias fica Aldebaran: aquela estrela bem brilhante meio laranjinha. É Taurus. Vê como os chifres estão em posição de ataque?
_Você acredita nessa coisa de signo do zodíaco? -ele quase debochou.
_Acredito que as estrelas têm algo de místico que ainda não compreendemos.
Parei para contemplar a cena toda. Estávamos sentados no alto da serra, trilhamos todo o caminho até aqui só para ver o que a TV anunciou há algumas horas. Dois meteoritos iriam se colidir no nosso céu. Nada grave, mas era um evento único. Era novembro, mês que namora o verão e a noite também. Seguimos o sol até ele se pôr e agora às oito horas podíamos observar as constelações. Taurus logo abaixo de Pisces, perto de Aquarius e companhia. Não estávamos ali para isso, um dos meteoritos cortaria o céu subindo e o outro desceria a seu encontro. Um partindo da constelação de Touro e outro de Peixes.
_ 'Cê conhece a história de Taurus?
_Não.
_O touro que se forma é Zeus, ele se disfarçou para seduzir Europa, dessa forma Hera não descobriria a sua traição. Da relação de Zeus e Europa nasceu Minos que governaria Creta e daria origem à lenda do Minotauro. Mas essa não é a melhor parte sobre essa constelação.
_Ah é? O que é então?
_São as plêiades, um setestrelo que fica no corpo do Touro. São sete estrelas que representam as sete filhas do titã Atlas. A olho nu você só consegue ver seis, o brilho da sétima foi roubado por representar Mérope que se casou com um mortal e por isso não podia mais brilhar no céu noturno.
_Quantos brilhos de quantas estrelas foram apagados por conta do amor? -perguntou melancólico.
_Provavelmente o suficiente para a porção negra do céu ser maior que a que brilha. -suspirei -Sabia que as plêiades são constantemente relacionadas às desgraças e à vergonha? É porque são estrelas de luxúria, como se amar demais fosse pecado e um acontecimento trágico.
_Toda a tragédia que reside no amor divide parede com um instante de felicidade.- silêncio. - Eu sou de Peixes, sabe achar essa constelação?
_ Engraçado, como você, essa constelação só aparece nitidamente de vez em quando. Entre outubro e novembro dá pra ver Pisces, é só você seguir o rumo das plêiades de Taurus à direita. Dali você cai no anel que une o cordão dos dois peixes: Afrodite e Eros, que se transformaram em peixes para fugir de Tifão. -pausa- Os melhores amigos que tive eram piscianos. Eles vêm, mostram todo um mundo para você e vão embora, apagam as pegadas para você não seguir seus caminhos. Transformam-se com uma habilidade espantosa. É engraçado como sempre me dei bem com eles, deve ter alguma coisa a ver com o fato de que Zeus enquanto Touro atravessou todo oceano a nado com Europa nas costas para chegar à Creta. Taurinos estão sempre nadando nos mares dos piscianos.
_Parece que você passa boa parte do seu tempo remontando mitos e superstições
_A gente tem que fingir que acredita em alguma coisa nessa vida.
Eu continuava a olhar para o seu rosto, notando duas ou três pintinhas perto do queixo e torcendo para que elas fizessem sentido. Eu ainda procurava uma lógica para o que eu sentia. Repetia dezenas de vezes o movimento de olhar para o céu e virar a cabeça para encarar seu rosto, esperando que agora eu notasse algum detalhe que passou despercebido, do mesmo jeito que abrimos a mesma gaveta trinta vezes em busca de um objeto perdido. Ou então quando vemos uma estrela cadente com o rabo do olho e depois começamos a olhar para o céu a todo instante, só pra ver se dessa vez não deixamos escapar a oportunidade de fazer um pedido. Como se o ato de procurar de novo no mesmo lugar fosse ajudar.
_No que você tá pensando? -ele me perguntou de mansinho.
_Na quantidade de pedidos que podemos fazer quando chover estrelas cadentes.
_E você quer pedir o quê?
_Não posso contar. Senão não vai realizar. -pisquei para ele de cumplicidade. Ele riu. -E você? No que tá pensando?
_Na dificuldade em viver debaixo de um céu que representa tanta coisa.
_E ele representa o que para você?
_A minha impotência diante do meu próprio destino. A minha incapacidade de mudar a minha ignorância sobre a vida. O não saber lidar com o que é imutável.
_Sei como é isso. Nos sentimos pequenos demais e não sabemos o que fazer com toda essa vontade de ser gigante.
_É um nanismo existencial completamente frustrante.
Pensei na possibilidade de estarmos juntos e logo descartei a hipótese. Considerar um beijo seria desejá-lo, isso implicaria em me mover e pensar em como conseguir isso. Não era o que eu queria. Eu esperava que a impetuosidade dele se juntasse à minha paciência. Nos acasos nos encontraríamos, seja para nos tornarmos irmãos ou amantes. Não importava. Pela primeira vez eu não sentia vontade de controlar o meu pequeno futuro, eu só queria uma reação positiva dele sobre mim. Torcia para que eu fosse uma das pessoas escolhidas para figurarem sua vidinha admirável. Caso eu começasse a orbitar seus anéis, acabaria por esbarrar em alguma coisa e quebraria algo que não devia, poderia resultar em uma cratera em mim ou nele.
Seríamos como os dois meteoros a colidirem no céu noturno. Lindo, intenso, breve e inevitável. Havia uma sutilidade metafórica nisso, a vida também era cheia dessas coisas. Vivíamos pelo o que era belo, sentíamos na pele a destreza do mundo e observávamos todos ignorarem debilmente a morte. Negavam o fim como se fosse óbvia demais a sua distância de nós. Enquanto o resto fingia não estar morrendo a cada minuto, nós dois nos agarrávamos a essa ideia. Esgotávamos todas as possibilidades que nos eram dadas e as oportunidades que apareciam eram exploradas até minarem seus recursos. Era morrendo que nos sentíamos vivos. E então aconteceu. Dois riscos laranjas atravessando o tecido negro estelar e se explodindo com toda a força que podiam, uma cachoeira de estrelas cadentes começou a jorrar para todos lados. Desejei de alma que algo extraordinário acontecesse dentro de mim, vi que era a única coisa que eu realmente desejava.
_Notou como a magia do desejo para uma estrela cadente é poder escolher só um pedido? -suspirei com vontade.
_Quando se tem a chance de pedir mais coisas você não quer. Parece que para vivermos plenamente aquele instante só precisamos de uma coisa. Talvez a vida seja sobre isso, sobre o que nos falta em um único instante e como essa necessidade muda a cada segundo que se passa, tornando todo momento muito específico. Não dá para viver o mesmo instante de novo, mesmo que se reproduza tudo de novo, suas necessidades já mudaram todas.
_Posso te falar a verdade?
_Fala.
_A verdade é que eu poderia te dar mil razões astrológicas para a gente se encontrar no meio do caminho. Poderia falar que é esse seu jeito pisciano, cheio de tato com todo mundo que encanta, essa sua coisa de nunca se prender à alguém ou aos hábitos e as rotinas, sua instabilidade na décima casa lunar que faz de você a pessoa mais atraente do meu céu. Ou então falar que é do meu signo ser teimosa e insistir em te procurar, ainda que uma coisa ou outra indique uma projeção astral desastrosa. Mesmo que isso soe como verdade, não é bem assim. Eu te procuro numa ânsia besta de tentar te entender e te fazer caber dentro de mim, mas não como o bom pisciano que você talvez seja, e sim como a pessoa doce que tem se tornado para mim. Existe esse mistério que te cerca, essa áurea que te envolve e eu fico embriagada pelo cheiro de terra úmida que tem esses caminhos que você trilhou.
_Não existe razão nisso. Não penso que somos regidos por estrelas, ainda que às vezes deseje isso bem no fundinho da alma, é irracional ser tão apegado ao que não se vê, não se sente e não se toca. Prefiro viver no meu próprio imaginário do que ser controlado pelo imaginário alheio. Entendo quando diz que é mais fácil encontrar desculpas fora do nosso alcance para justificar nossos atos, aprecio a honestidade, é muito fácil fiar uma teia de mentiras com meias-verdades. O meio do caminho é muito longe, apesar de ser metade, existem milhões de frações para se percorrer até chegar lá. Querer apressar isso é como tirar o bolo do forno antes da hora, vai murchar e perder toda a graça. Vamos caminhando devagarzinho, deixa essa pressa só para sentir o mundo e a vida.
Deitamos na grama para continuar observando o céu. Nos demos as mãos porque sentíamos medo da nossa pequenez. Sabíamos que poderíamos sucumbir a qualquer momento por causa de um evento astronômico imprevisível ou pelos próprios mistérios do universo. Meu coração acelerou com a hipótese de morrer sem ter vivido e mostrado tudo o que eu queria. Olhei dentro daqueles olhos negros demais e me acalmei. O fim conforta mais que o princípio. As possibilidades é que assustavam e faziam a humanidade recuar diante do próprio destino. Daquele momento em diante eu entendi que o segredo não estava em correr para os braços da morte, muito menos tentar fugir dela a todo custo, mas passear pela vida calmamente e ir de encontro ao fim como quem caminha sem pressa para visitar um velho amigo.
Najla Brandão