sexta-feira, 20 de julho de 2018

Subversão




        _Cara, vaza da minha vida. 'Cê tá me matando aos poucos.
Era isso o que eu tinha vontade de falar no meio das fuças dele.
Tinha esse rapaz. Ele sentia coisas muito bonitas e também sabia brincar com as palavras. Ele não tem nome. Ninguém que não faz morada no meu coração possui um nome, mas ele tinha o vento nos cabelos e um nariz engraçado. Isso pra mim bastava. Chegara há pouco tempo e me roubou alguns suspiros, mas ficou na soleira da porta, eu não o convidei. De rebatida não me pediu para entrar, disse que prefere conversar ali na porta mesmo, se fosse o caso a gente podia ir na livraria tomar um café juntos. Eu não vou.
Não vou porque já andei muito chão, já vi muita malícia escondida debaixo de lindos cachos. O que posso dizer se sou perfeitamente vacinada contra esse tipo? Isso não quer dizer que não vai me roubar um beijo ou outro. Sou uma colecionadora de carinhos. Isso só significa que não vai ter amor depois do café e nem promessa de um romance incorrigível quando terminarmos de fumar o cigarro mais ferrado do país.
Rapaz do tipo poeta que chama só pra ver se a gente vai. Não tem pretensão nenhuma de ficar por perto também. Jack camaleão que hoje tem em mim seu esconderijo e amanhã já muda de cor e de ares. Entendo que a intenção pode até ser das melhores, mas desconhece os segredos de seu coração e sempre cai nas próprias armadilhas. Pois venho dizer que também sei me camuflar, mesmo que seja de gente que decifra metade de mim sem precisar de esforço. Há outra metade que se faz mistério, que se esconde nos armários e que não sai pra brincar nem se alguém chama. Sempre vou estar preocupada demais escutando Amélie Poulain enquanto ele deságua um narcisismo crônico que beira a ser doente. É muito fortuito que nesse caso eu adore uma doença. A cada fincada no peito, dor localizada de cabeça, cólica, músculo que dói eu penso que estou morrendo. No próximo minuto posso infartar, meu aneurisma se romper ou meu câncer atingir nível 4 de metástase. Basicamente é isso que me move. Saber todo dia que eu vou morrer e que todos que eu conheço vão morrer nesse dia também, faz os meus dias impressionantemente calorosos, cheio de abraços, beijos e risos. Também me deixa uns quinze por cento mais irresponsável.
Se ele vem eu o mastigo e não deixo pedaço inteiro, pode me chamar de de truculenta e sem coração, mas eu sempre avisei do meu descaso com o gostar de alguém. Chamou aqui na janela esses dias para brincar. Eu não sei brincar, quando vejo já estou machucando a rua toda e tenho uns cotovelos ralados de esbarrar no muro chapiscado de alguém. Isso não é nada para quem quebrou os ossos do corpo a vida toda e sentiu todas as facadas possíveis. Não é nada para quem sabe onde mora o inimigo e que roupa ele veste. Não acho que exista ser no mundo capaz de me fazer tombar e entortar de novo. Pensa que me tem nas mãos, mas nesse jogo eu tenho ganhado. Não que isso seja algo a se gabar, pra falar a verdade chega a ser triste, mas a vida me deu um excesso de sensatez quando se diz a respeito de sua lascívia. Mordo os lábios e ofereço dois ou três tipos de travessuras. Os rapazes se entortam, por qual motivo seria diferente com ele?
De manhã não temos remelas nos olhos, só um aconchego quente de quem acaba de tomar uma caneca de leite para suportar o dia. As frases ainda estão ressoando pelo quarto porque tem gente de coração bom e palavras traiçoeiras. Se eu mesma não fosse do esquadrão anti-bomba, já teria me fodido nessa de mergulhar cegamente na conversa alheia. Conversa mole, chega de mansinho, ri no pé do ouvido, fala besteiras que podem te enlouquecer. Olha nos seus olhos e parece que te desnuda toda, vê até o que tem por de trás da alma, dá calafrio. Isso passa quando eu lembro das minhas paixões, do mundo de possibilidades que eu devo abrir mão se escolher uma vida só para amar e viver. É muito fácil eu me perder da vista desse rapaz, e é quase com a mesma facilidade que posso me perder naqueles dentes.
Vive dizendo que me quer como peça exclusiva no seu quarto, mas eu sei da coleção que ele tem por lá. Não quero fazer parte, são obras de arte lindas e que marcam muito sua história, mas são memórias de algum tempo bonito que viveu. Das suas linhas parece que sempre falta fôlego. Não é pela falta de vírgulas, pontos ou parágrafos, é por sua ânsia. Jorra detalhes para todos os cantos e não há palavras o suficiente nesse mundo para que ele as coloque no papel. Tenho pena de quem se torna sua musa e um medo imenso de parar na ponta de sua caneta. O problema é que parte do medo é também desejo, vontade do proibido, do que não se pode aguentar. Graças aos deuses eu aprendi a controlar isso a ponto de não deixar ser maior que eu. Seu pessimismo é que me mata, é o que dá mais vontade de juntar os cacos e fazer dele inteiro novamente, mostrar que dá pra ser amor dividindo uma lata de leite condensado. Me mata ver ele se jogando em um mar de sombras retorcidas, dá vontade de mergulhar e salvá-lo desse inimigo que desconheço, mesmo sem saber nadar. É tolo. Por isso mesmo tapo meus ouvidos para não ouvir as ondas engoli-lo, caminho na direção oposta, vejo o sol onde só tem chuva. É imbecil também.
Ele é capaz de despoluir meus ouvidos, desembaçar meu mundo e desenterrar toda a minha insanidade. Essa minha insensatez de querer beijar o perigo ainda me tira a vida. Logo ele que é tão tóxico, tão impuro e impróprio. Chegou como o frio da cidade, sem pedir licença para ficar beirando a minha casa. Se eu abro a porta, essa tormenta vem e bagunça tudo o que que eu demorei séculos para organizar. Destrói tudo. Não deixo e pronto. Então eu peço pra ir embora com o coração implorando para ficar. Eu o sufoco no grito que solto no travesseiro, mato e desmembro-o todo alegando que eu o adoro, que eu o quis de um jeito que não pude tê-lo e me culpo e me arranho por nunca ter lidado com esse inferno antes. Era O Morro sendo recontado e não sabíamos direito que papel interpretar. O infeliz deveria ser preso por 171, estelionato emocional, tá lá na lei "obter, para si ou para outro, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento". O que eu sentia era camicaze, ia de encontro ao que me matava tentando conseguir qualquer tipo de glória nessa bobagem. De novo, imbecil.
Era muito fácil olhar para ele e querer explodir. Nunca entendi como eu podia odiar tanto o fato de adorar tudo o que detesto nele. Não faz sentido algum. Eu tentei racionalizá-lo, enquadrá-lo em qualquer canto de merda na minha vida e não consegui. Ele foge a toda tentativa de fazer sentido. Eu namoro sua loucura  e não sei lidar com ela. Procuro em seu discurso toda forma geométrica que se encaixa na minha, mas me fascino com os polígonos irregulares que não fazem par com meus triângulos isósceles. Minha preguiça dele vivia de mãos dadas com as minhas meninices, imagine só o susto que levei quando me vi fazendo as unhas dos pés pensando que poderia encontrá-lo em qualquer esquina.
Foi assim que parei aqui, tentando superar o vício de falar e pensar sobre ele o tempo todo. Passa, pra variar é passageiro. Então deixa eu desabar aqui todas as incoerências de querê-lo. Preciso registrar isso antes que seja tarde demais e eu perca esse momento único de inspiração que, apesar de ser momento, dura há alguns dias já. Respiro em paz enquanto coloco os últimos pingos nos Is desse texto cansativo. Metade disso já foi, agora só falta mais um pouquinho.

Najla Brandão