segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Doente da rima, do coração e do pé



eu queria ser cura,
mas sou placebo
a solução poderia ser as minhas juras,
mas eu não juro, eu bebo

toma-se doses cavalares de mim,
mas não sara,
a dor não para,
só vira um comichão sem fim

eu podia ser o SUS,
com rimas tão pobrezinhas assim,
eu até faço jus
à essa fama de que faz
ou de que trata,
no fundo é a espera quem te mata
com dedos de quem traz paz.

R.I.P.

Najla Brandão

domingo, 19 de outubro de 2014

Escrivinhista


melhor que escritor e poeta,
é ser escrivinhista
que não sabe se escrivinha
ou escrivaninha.


Najla Brandão 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

coração vendido



saí contigo e fiquei tão feliz,
mas tão feliz,
que saí de novo

saí de novo e fiquei tão feliz,
mas tão feliz,
que quis sair com outros

saí com outro e voltei tão feliz,
mas tão feliz,
que quis beijar você de novo

Najla Brandão

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Marina



         Perdi todo o interesse que eu tinha na vida depois que encontrei com essa menina na fila do caixa da padaria. Não me dei conta disso instantaneamente. Ela carregava um monte de sacolas como se tivesse comprado metade do estabelecimento e eu me ofereci pra ajudar. Ela recusou de primeira, mas aceitou dizer seu nome.
         _Marina. Pode me chamar de Nina. E o seu? - perguntou deixando as sacolas no chão e estendendo a mão direita para me cumprimentar.
         _Otávio. -retribuí o aperto de mãos e me aproveitei da situação para pegar algumas sacolas, ela não protestou e me guiou pelo caminho até sua casa, que ficava a dois quarteirões da minha, na mesma rua.
         Começou assim, sem promessas e sem expectativas, não demorou muito tempo para eu começar a frequentar a padaria todos os dias com a intenção de revê-la. Passava na porta da casa dela, pegava o caminho mais longo só para ter essa chance, já era uma obsessão.
         _Otávio!
         Marina. Ela quem me encontrou perdido feito um andarilho vagueando as ruas da cidade. Estávamos quase na porta da sua casa de novo quando eu a chamei para tomar um café. Conversamos a tarde toda e eu me vi fascinado pelos seus detalhes. Quando vi já eram quase seis e tive que ir embora. Nina me levou até a porta.
         _Obrigado pelo café -agradeci.
         _Não foi nada. -ela sorriu e escondeu metade de si atrás da porta. Foi fechando devagarzinho e eu dei as costas para ela.
         _Ei! -chamou de volta.
         Virei pensando que poderia ter esquecido algo, mas o que encontrei foi um par de lábios acariciando os meus. Embasbacado com o beijo roubado acabei me empolgando. Avancei pela porta e voltei para o apartamento que eu tinha deixado para trás poucos minutos antes. Percebi que o que eu tinha esquecido por lá era o meu juízo.
         Enrosquei meus dedos nos seus cabelos castanhos quase mel e fiquei todo enrolado com suas mãos que tateavam todo o meu corpo em busca de me libertar das roupas. Parei no meio de um quarto, completamente tonto, agora que abria meus olhos pela primeira vez. Fiquei surpreso de ver Marina me observando divertida. Caminhou até a sacada despindo o vestido, fechou as janelas e voltou para os meus braços. Nos deitamos e ali naquele quarto eu desnudei muito mais do que a pele daquela menina, descobri não só seu corpo, mas um território inteiro do seu continente. Ela, em vez de pensar no próprio umbigo, lambia o meu perversamente. Mordia meus dedos melados e me beijava a boca com o gosto do sal que existia na minha pele. Chupava do lóbulo da orelha até a base do meu pau como se estivesse alheia ao mundo, perdida num limbo malicioso de luxúria. Nina não transava. Comungava consigo e me usava de recipiente para receber o divino em um orgasmo delirante.
         Toda suada olhava para mim com aqueles olhos de ébano pesado, que resistiam à toda e qualquer tentativa minha de penetrá-los. Sentia que ia morrer toda vez que olhava para eles. Eu poderia jurar que cada olhar seguido de um sorrriso era um jeito de me matar. Nessa noite eu contei, morri cento e oitenta e seis vezes. Cada uma diferente da outra.
         _Eu quero te devorar todo. -ela dizia apertando os olhos de tanta vontade.
         _Já não fez isso?
         _Não, eu digo de verdade. Gosto de você. -repousou a cabeça no meu peito. - Eu poderia casar contigo.
         _Eu também. -respondi.
         Era harmônico. Casar, ter filhos, abortar e divorciar. Amar em intensidades estratosféricas parecia certo. O tempo respeitava o nosso templo, e as nossas próprias dissonâncias respeitavam o silêncio tântrico daquela cama. O universo se resumiu a um jogo de lençóis velho durante uma madrugada toda. Os prédios, as luzes, as árvores, tudo parecia estático num sinal de deferência ao que nascia ali. O cheiro dela era de roupa limpa e cigarro de filtro. Não tinha nenhum traço de perfume na sua pele, exceto por uma áreazinha no braço esquerdo que poderia ter um cheiro maravilhoso por alucinação minha ou um cuidado vaidoso dela. Conversamos, rimos bastante das nossas bobagens e de tudo o que nos complementava ou suplementava. Vi que tangenciávamos aqui e ali na vida, me deslumbrei com os nossos senos e cossenos, mas eu tinha medo. Vez ou outra, quando ela se escondia atrás de uma mecha de cabelo, eu poderia jurar que não era o certo. Ela poderia ir embora a qualquer instante. Paixão pra ela era como o café-da-manhã de quem madrugou a noite toda: uma incerteza. 'Cê nunca sabe se vai aguentar virar o dia para tomar aquela xícara de café ou se vai dormir antes de dar seis da matina pra acordar só depois das duas da tarde. Não sabe se pega as roupas e vai embora ou se fica pra ganhar cafuné e dormir nos braços de alguém.
         _Otávio, cê já amou alguém? -ela me perguntou do nada.
         Parei de acariciar seus cabelos para pensar durante um segundo na resposta.
         _Sim.
         _Você ainda ama ela?
         _Acho que não.
         _Pensa muito nela?
         _Mais do que deveria, às vezes dá saudade.
         _Lembrei de um pôster engraçadinho.
         _Ah é? Qual?
         _Um que falava assim: "Jogo conversa fora, búzios, tarô, war, truco e gato mia.  Revelo o futuro, mas só a parte boa. Tristeza, fome, dor de cotovelo e cólica, curo até saudade, só não lavo a louça."
         _E cê faz tudo isso?
         _Faço até mais.
         _Tipo o quê?
         _Estrago seu amor pela ex em três dias.
         Eu ri daquela verdade absurda.
         _ E você? Já amou alguém?
         _Não sei. Eu me apaixono com certa facilidade, mas acho que nunca amei verdadeiramente alguém. Creio que não sei fazer isso direito, sabe? Amar apaixonadamente.
         _Porque?
         _Não sei lidar com isso de espaço emocional alheio. Tenho vontade de me envolver com tudo o que o outro faz, mas não posso. Aí eu acabo perdendo o interesse. Isso se eu não me machucar tentando ajudar alguém nessa brincadeira de me importar demais.
         Ela queria ser amor, mas ninguém tinha ensinado pra ela como é que se amava. Isso explica os tropeços que seu coraçãozinho dava. Como podia caber tanta poesia dentro de uma garota?
         _E olha, -ela continuou- acho muito instável isso de estar em um relacionamento. Como podem duas pessoas conviverem bem com o fato de que podem ser largadas a qualquer instante? Relacionamento é isso no fim das contas, o povo finge que não, mas é. É escolher todo dia estar com alguém, como é que se sujeitam a serem escolhidos e escolherem todo os dias?
         _É um ponto válido.
         Nina queria algo que não fosse sublimar ou escorrer, que colocaria nas palmas das mãos e teria certeza de que não volatizaria e tampouco escaparia pelos buracos dos dedos. Fluiria em cima da pele fina e faria cócegas quando começasse a ultrapassar os limites das mãos e avançassem pelos pulsos. Eu não diria impossível de se obter, mas certamente era algo muito difícil. Eu queria contar pra ela que eu poderia oferecê-la tudo o que ela quisesse, eu seria amor junto dela, transpiraria suas bonitezas por aí. Mas como é que você diz para uma menina tão linda umas mentiras tão descabidas? Em vez disso, olhei nos olhos dela e joguei a única certeza que eu tinha.
         _Você é linda demais, que isso!
         Ela riu, não acreditava no que eu dizia. Segurou as minhas mãos debaixo das cobertas, beijou a minha testa e fechou os olhos. Desfiz meu corpo nesse ato que, por outros olhos, desmoralizava a minha masculinidade. Foi quando eu percebi que algo crescia dentro de mim. Ela dormiu e eu tentei fazer o mesmo, mas não consegui. Eu queria levar Marina para casa, cuidar dela com o esmero que guardei em mim por toda a vida. Ainda que eu sentisse que fosse errado querer levá-la embora. Depois disso, o sono me atacou. Dormi por algumas horas, não muito porque acordei com ela levantando da cama e com o quarto escuro.
         _Tenho que ir trabalhar. Se quiser pode ficar, tem café na cozinha. É só trancar a porta e deixar a chave debaixo do vaso de plantas da porta, tá bom?
         Fiz que sim com a cabeça e esfreguei os olhos.
         _Eu quero sair contigo de novo, rapaz.
         _Eu também.
         Mas a coisa morreu aí. Ela veio ao meu encontro e me beijou. Um beijo apressado, despretensioso, vazio de promessas. Ela nunca disse quando. Poderia ser amanhã, daqui uma semana ou um ano, quando ela voltasse daquela viagem longa pro exterior. O de novo é uma incógnita que a gente insiste em achar que é certeza. Olhou uma última vez para mim e fechou a porta do quarto. Quase de imediato comecei a me mexer, juntar as roupas caídas pelo chão como alguém que procura as peças de um quebra-cabeça para encaixar. Fiquei com Marina na cabeça.
         Passei o dia todo pensando numa maneira de encontrá-la despretensiosamente de novo. Dividi a mesma cama com Nina e ainda parecia que não tinha saído do zero. Não tinha a coragem de aparecer e chamá-la, eu mesmo não queria invadir seu espaço sem ser convidado. Eu soube que era real quando quis deixá-la livre. Pela primeira vez não quis tomá-la para mim, só rezei para que ela viesse de boa vontade. Talvez amar fosse isso, pedir todas as manhãs para que o outro te escolhesse mais uma vez, mas não ficar de todo triste quando não aparecesse. Continuei a ir na padaria todos os dias, ela nunca mais apareceu. Mudei de padaria e lá estava ela. Seus cigarros tinham acabado, disse ela na fila do caixa, mas no fundo eu sabia a verdade. Era medo purinho de numa dessas acabar se apaixonando por alguém. Fui embora meio triste.
         Não chamei Marina para sair.

Najla Brandão

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

João,



pensei que a gente ia parar de se escrever. 'Cê anda mudo, com cara de quem foi atropelado por um trem emocional carregado de mármore bruto. Engraçado como a vida tem dessas coisas, ontem era você que vinha me socorrer e hoje eu te desafogo dos seus desesperos. A gente tem tudo para se salvar, eu te jogo o bote e você me lança a corda. Eu subo e você rema. Mesmo assim, eu nunca te toquei. A distância, que cobre esse mar de montanhas e nos afasta de um encontro lindo, um dia ainda me leva pra conhecer o seu estado. Até lá resta-me a força de vontade para descobrir o que fazer com tanta coisa bonita e serena dentro de mim.
       O mês passou e eu dei cria por demais. Criei ninhos de textos, vontades borbulhantes e desejos voluptuosos, quis ter mais gente do que cabia em mim, só pra variar. Sofri uma vez de um pânico horroroso e duas ou mais com meus humores instáveis. Não tinha você pra me acalentar, dizer quaisquer palavras que acalmassem meus ânimos. Não teve ninguém, pra falar a verdade. Solitude é algo que reverbera por aqui com uma intensidade absurda e, pela primeira vez em muito tempo, eu a sinto bater seus punhos firmes na minha carne amaciada pelas estradinhas da vida. Não encare isso como uma reclamação, é só algo que notei.
       Escrevo para te contar das coisas que preciso que saiba. Se eu escrevo você pode cobrar de mim e assim eu não esqueço como ser eu mesma nesses dias quentes demais. O bafo do vento sopra e eu te falo: to com saudades da gente. Podia jurar que te vi no rosto moreno de um desses meninos da cidade. Não era você, é claro. A intangibilidade entre nós é o que sustenta o nosso romance não consumado, essa parceria que sempre funcionou por não coexistirmos no mesmo ambiente. 'Cê é cachorro-do-mato e eu cadela de apartamento, não há A Dama e o Vagabundo nesse mundo que una duas variantes tão parecidas. Mas não deixo de me perguntar: e se eu te encontro numa esquina vazia, assim sem querer, e acabo te reconhecendo? O que acontece quando a minha mão for de encontro à sua?
       Deixando de lado os questionamentos, eu preciso de mais notícias suas. Aqui dentro do peito eu sinto que tem algo de errado contigo, mas você não fala. Guarda suas desgraças e aflições e não compartilha, se emudece na tentativa de não gritar pro mundo o que a sua alma encoleriza. Canto um mantra, faço uma prece, abro um biscoito da sorte na pretensão de pedir uma benção ou a sua proteção. Aguardo um minutinho e chove. Pode ser um sinal de graça concedida.

Um abraço apertado de quem te quer bem,

       Najla Brandão