terça-feira, 9 de maio de 2017

Fluxo



    Não represo mais. 
     É estranho dizer isso. A natureza do meu próprio ser é guardar, acumular, juntar e manter a posse das coisas, das pessoas. Eu parei de represar. Deixei o rio seguir seu próprio fluxo para gentilmente tocar a superfície borbulhante da água que corre, mas que não protesta contra meus dedos fazendo com que eu me sinta cansada de segurar.
     Eu deixo ir e deixo estar. Sinto sua falta, não me lembro do seu cheiro mais, nem do encaixe do teu corpo no meu. Não consigo me recordar de muita coisa. Lembro dos seus olhos que somem quando o sorriso é sincero e afunda em covinhas esculpidas com todo o esmero do mundo, lembro da risada que ecoa baixinha num tom meio rouco e bobo. Lembro de me sentir estupidamente apaixonada e bem querida em braços que mal mal me tocaram meia dúzia de vezes. Ainda que pareçam lembranças excessivamente longínquas, posso sentir o hálito delas no meu pescoço quando me esforço para lembrar.
      Te deixo ir e te deixo estar. Não da maneira permissiva como quem pede autorização. Eu deixo no sentido de soltar sua mão pra você conquistar o mundo e mais trezentos milhões de corações e sorrisos. Eu te empurro pro mundo sem deitar na cama e rezar para você voltar. Eu só deixo. Vai, rapaz. Não existe nada no mundo que eu possa te oferecer a mais se eu te segurar pelo colarinho. Eu medito na esperança de manter esse meu sentimento silencioso e baixinho: vai lá ser feliz. Tu abre e fecha a porta quando quer e quantas vezes quiser, por que eu não a tranco e não tenho chave para te dar. Se quiser morar em mim, é só vir e deitar a cabeça no meu colo. Sei que cê vai roncar, mas eu não ligo muito. Juro. 
      Não se assusta. Pode ser que daqui pra frente eu escreva muito ou nunca mais escreva mais nada. É tudo absurdamente novo para mim. Eu observo em um plano americano de cinema a cena mais aguardada do filme: a mocinha se apaixonando pelo mocinho. São uns 200 frames que duram uns seis meses. É o longa-metragem mais longo do mundo. Cada dia um quadro diferente que parece ser idêntico ao anterior. Mas hoje é uma mão que se abaixa um milímetro a mais, amanhã é um pedacinho a mais que você se expôs, daqui duas semanas é um pedaço inexplorado de terra que eu ainda não vi,  por onde podem morar dores e amores. 
      Eu não me perdi. Eu não encontro destino onde existe coincidência. Eu não enxergo amor onde mora carinho. Eu não invento palavras e sentimentos que não saíram da sua boca. Eu não forço que você se interesse pela minha vida, meus pensamentos, minhas loucuras ou meus textos ruins. O melhor texto que escrevi ainda continua sendo sobre um amor platônico de eras jurássicas da minha vida. O melhor beijo da minha vida continua sendo de um amigo gay e o mérito de melhor química do universo e conjunto da obra é seu. Obrigada pela sobriedade, sua sensatez faz parte do que me fez derreter pelos seus encantos. 
     Não me promete nada. Eu não quero promessas para além das que já tenho firmadas contigo. Mas eu me atrevo a pedir com muito carinho. Cuida desses corações que você coleciona. Não deixa cair no chão, nem arranhar nenhum deles. Eu vou aqui tomando conta do meu pra se um dia você quiser, eu te entregar ele lustrado e inteiro e receber em troca o seu.

Najla Brandão
     



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